quarta-feira, 23 de abril de 2014

Seqüência 10.1 - O Gato



            Hosana concordara com a idéia de Francisquim de deixar Pernalonga vender maconha para alguns de seus conhecidos, desde que o negócio não incluísse dolinhas. Deveria vender apenas peso. À Pernalonga pareceu ótima a oportunidade de voltar aos negócios, menos bandeiroso, podendo se dar ao luxo de descartar a lida com moleques abusados que batiam na sua porta às três da manhã, inconvenientes, ligando para o seu celular e falando abertamente quantidade e valor.
            Tinha de ser muito cuidadoso, agora. Pra começar, saber onde diabos iria esconder dois quilos de maconha hidropônica sem que a polícia ou gente como Francisquim (embora este fizesse apenas pela diversão) não invadissem seu quintal enquanto ele não estivesse e roubassem toda a droga.
            Agora mesmo, Francisciquim estava metido dentro da casa do amigo, curioso de ouvir mais uma mensagem de voz no celular

Que mentira que é você. Que engodo. Solto o ódio só pra te detonar, que não sou nada disso. Sou melhor que você. Essa pose e nariz empinado. Como se não precisasse de ninguém. Vai lá. Babaca! Vai lá pra essa vida louca ridícula que você tanto quer. Vai lá, seu babaca. Vai se foder!

e notando num canto, perto da mesa coberta por contas vencidas, copos sujos e diferentes cinzeiros cheios de bingas, uma cama improvisada, sem colchão, apenas duas colchas e um travesseiro, embolados, certamente usados. O problema era por quem. Um cachorro estaria muito bem servido se passasse à noite embolado em tais trapos. Um homem mal e mal conseguiria se cobrir.
            Chiquim deu dois passos e conferiu o quarto, único outro cômodo da casa de Pernalonga, já que o banheiro ficava do lado de fora, alguns metros para dentro do quintal – uma diversão para os moleques com quinze anos que queriam pregar sustos uns nos outros, um tormento para homens com mais de trinta tentando chegar ao banheiro no frio da madrugada antes que as bexigas estourassem. Cheio de poeira, o cômodo revistado não era muito diferente do quarto de muitos dos amigos de Francisquim – embora alguns, como o padre, tivessem quartos melhores que outros. O único diferencial no quarto de Pernalonga, além dos pôsteres de mulher pelada espalhados pelas paredes, era o microondas na cabeça da cama.
            Para Francisquim, o problema da maconha de Hosana era a enorme lombração que deixava após ser fumada. Os passos, atos, pensamentos todos passavam a fazer parte de um excelso veio de prata brilhando para fora da existência, um ponto fulgurante no silêncio do espaço, na linguagem sinestésica que fazia sentido a Pernalonga. Francisquim despassou-se até o lado de fora da casa, sem tirar olhos do celular e da tomada e da luz acesa e correu olhos na geladeira e colou-se no silêncio pra ter certeza de que ouvia o barulho do motor. E ouvia.
            Saiu da casa, Pernalonga nem notando, Chiquim de olho na fiação, Pernalonga ainda naquela de lamentar a árvore cortada, Chiquim sacando agora tudo, falou:
            - Cara.
            - Fala.
            - Sua geladeira não tá congelada. A água tava estragada, mas não tinha gelo no congelador.
            - O que tem isso?
            - E seu celular devia ter explodido.
            - Devia?
            - Devia. Ligado tanto tempo. Queima. Kaput, mermão! Mas não aconteceu.
            - Sorte minha, não é?
            - É, sorte. Mas isso aí, pra mim, tem outro nome.
            Francisquim apontou para o alto, o amarfanhado de fios que se embolavam num canto do lado de fora da casa de Pernalonga, e que iam culminar num único fio, branco, de extensão, esticado pela jabuticabeira, através do quintal, até a casa do tio morto.
            - Isso se chama gato -, falou Francisquim: - Seu tio fez um gato de luz pra você.
            Ainda era primavera, mas a quentura da noite parecia verão. No morro à frente, um mar de vaga-lumes tomava o campo de visão num frenético piscar. Próximo à casa de Pernalonga, cigarras torpedeavam a noite com seu cantar. E lá embaixo um caminhão desgovernado batia no carro de Francisquim, acordando a vizinhança.

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