segunda-feira, 14 de abril de 2014

Seqüência 3.1 - Para enganar a fome



            Uma dose. Quando desceu do ônibus e verificou a carteira e revirou os bolsos, Tompinhão-Coelho percebeu que só tinha dinheiro para uma dose e nada mais. E era uma dose mesmo que ele queria beber, então tratou de ir para o Bar do Alfredo, que o Dedé tinha fechado para sempre. Conhaque Presidente. "Copo ou canudo?", perguntou automaticamente o Célio, uma brincadeira comum entre eles que inspirou a Tompinhão-Coelho alguma familiaridade quase esquecida. Quase sorriu, mas acabou fazendo uma careta. Tinha virado tudo numa talagada, esquecera-se da vagareza de outrora, quando bebia cachaça como água, agora era mais honesto a respeito da velocidade com que queria logo se livrar do peso do copo. E assim, tossiu como um porco.
            Ao seu lado, sobre o balcão, um copo abandonado de Jurubeba, com a onda interna em uma parte do lado de dentro como que bebido, repousava solitário. Mas fosse o álcool ou a ligeira privação de oxigênio que o engasgo lhe dera, o fato é que Tompinhão-Coelho achou ter visto alguém dançando dentro da bebida. Um homem alto, esguio, fazendo passos que poderiam ser de uma dança tribal ou de um ataque de epilepsia. Mas não era uma dança tribal, era um passinho escroto feito por um homem que não sabia dançar e que estava menor que um copo americano, ali, dentro da porra do copo. Tal logo se abaixou para verificar mais de perto (não ousou levantar ou mesmo pegar no copo para levá-lo à altura dos olhos), teve de se afastar porque o homem crescia e, encharcado do futum das ervas misturadas, saiu do copo e ficou parado ali, do lado de Tompinhão-Coelho.
            “Odeio Jurubeba.” Era Samurai, que com seu sorriso de negão simpático, deu uma leve bofetada em Tompinhão-Coelho. "E aí, Coelhito, chegamos juntos na cidade, hein?"
            "Você tá chegando dionde?" Tompinhão-Coelho deixou a estupefação passar batida, que afinal estava ali com Samurai e se tinha algo que sempre poderia acontecer era que aquele amigo surgiria do nada, das maneiras mais extravagantes.
            "De mim mesmo."
            "Ih, peraí, se vai ser filosófico, me paga uma pinga."
            Samurai riu e mandou descer duas doses de Jararaca. Não contou de onde vinha, tampouco Tompinhão-Coelho. Eram bons amigos que dispensavam certas formalidades e apenas estavam felizes de se rever. "Vamos ter uma reuniãozinha da antiga galera, não é?"
            Tompinhão-Coelho não entendeu. Estariam marcando algo e não tinham avisado a ele? Afinal, ele só voltara a Macuco para trabalhar no jornal de Furquinha e tinha sido uma completa surpresa encontrar Samurai boiando num copo. Então, se algum churrasco fosse rolar, com certeza era pelas suas costas. Bem feito, quem mandou virar vegetariano? "Não tô sabendo, vocês combinaram quando?"
            "O universo combinou por nós, Coelhito. Está chegando todo mundo. Eu, você, Zelito, Mussum, Satã..."
            Tompinhão-Coelho nunca fora uma pessoa de medir palavras, mas a intimidade e o tempo fizeram com que ele quase gaguejasse nas próximas: "Todo mundo? Até o Lagar..."
            "Todo mundo tá chegando, Coelho. Dá pra sentir no ar. Lagarto também não demora a chegar", e Samurai silenciou por um momento, no qual Tompinhão-Coelho, que nunca fora capaz de decifrar as expressões, encharcadas de álcool ou não, do amigo, reconheceu uma ponta de saudade do passado comum a eles.  "E quando chegar, ele deve pedir pra dormir na sua casa. Se fodeu."
            Tompinhão-Coelho ia dizer alguma coisa quando Samurai lhe sorriu novamente: "Sabe quem mais está na cidade? Seu xará."
            Tomás Pinhão nunca tivera um xará na cidade, muito menos entre o reduzido círculo de amigos que amealhou na juventude, então não tinha idéia do que falava Samurai. "Xará, meu?"
            "Porra, passou aqui agorinha, quase que uma sombra que te antecipou. Dentuço igual a você (você não tem mais trauma disso, né?, deixou crescer o bigode, estufou o peito, os ombros estão mais altos... Tá fazendo academia, é?), infinitamente mais filho da puta e mais baixo também. Quem poderia ser?"
            Então, Tompinhão-Coelho soube de quem se tratava. No ônibus, enquanto voltava para Macuco pela primeira vez em quase três anos, reparara nos outros passageiros, um hábito do fotógrafo sempre em busca de novos tipos estranhos para sua coleção mental particular, encontrando um peculiar casal de manetas de cotocos dados (bimanetas, ela só tinha a mão até a altura de onde cresciam os dedos, ele nem isso - tristes casos de gente que precisou buscar quinas de mesa ou auxílio amigo para conseguir se masturbar com alguma eficácia), uma moça tristonha tirando vidro do cabelo, um rapaz magro lendo um livro onde ele era o personagem, uma criança que tocava o nariz com a ponta da língua, um hippie louco bebendo o que ele julgou ser álcool-combustível com um pouco d'água numa garrafinha plástica e uma pessoa com quem ele, Tompinhão-Coelho, fizera muitos negócios no passado, Pernalonga, o traficante pé-rapado mais maluco e queimador de filme da cidade.
            "'Bora queimar um beque?", falou Pernalonga, materializando-se (algo bastante comum naquele dia) ao lado de Tompinhão-Coelho e Samurai, explanando pra geral o bonde da maconha.

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