Uma
dose. Quando desceu do ônibus e verificou a carteira e revirou os bolsos,
Tompinhão-Coelho percebeu que só tinha dinheiro para uma dose e nada mais. E
era uma dose mesmo que ele queria beber, então tratou de ir para o Bar do
Alfredo, que o Dedé tinha fechado para sempre. Conhaque Presidente. "Copo
ou canudo?", perguntou automaticamente o Célio, uma brincadeira comum
entre eles que inspirou a Tompinhão-Coelho alguma familiaridade quase
esquecida. Quase sorriu, mas acabou fazendo uma careta. Tinha virado tudo numa
talagada, esquecera-se da vagareza de outrora, quando bebia cachaça como água,
agora era mais honesto a respeito da velocidade com que queria logo se livrar
do peso do copo. E assim, tossiu como um porco.
Ao
seu lado, sobre o balcão, um copo abandonado de Jurubeba, com a onda interna em
uma parte do lado de dentro como que bebido, repousava solitário. Mas fosse o
álcool ou a ligeira privação de oxigênio que o engasgo lhe dera, o fato é que
Tompinhão-Coelho achou ter visto alguém dançando dentro da bebida. Um homem
alto, esguio, fazendo passos que poderiam ser de uma dança tribal ou de um
ataque de epilepsia. Mas não era uma dança tribal, era um passinho escroto
feito por um homem que não sabia dançar e que estava menor que um copo
americano, ali, dentro da porra do copo. Tal logo se abaixou para verificar
mais de perto (não ousou levantar ou mesmo pegar no copo para levá-lo à altura
dos olhos), teve de se afastar porque o homem crescia e, encharcado do futum
das ervas misturadas, saiu do copo e ficou parado ali, do lado de
Tompinhão-Coelho.
“Odeio
Jurubeba.” Era Samurai, que com seu sorriso de negão simpático, deu uma leve
bofetada em Tompinhão-Coelho. "E aí, Coelhito, chegamos juntos na cidade,
hein?"
"Você
tá chegando dionde?" Tompinhão-Coelho deixou a estupefação passar batida,
que afinal estava ali com Samurai e se tinha algo que sempre poderia acontecer
era que aquele amigo surgiria do nada, das maneiras mais extravagantes.
"De
mim mesmo."
"Ih,
peraí, se vai ser filosófico, me paga uma pinga."
Samurai
riu e mandou descer duas doses de Jararaca. Não contou de onde vinha, tampouco
Tompinhão-Coelho. Eram bons amigos que dispensavam certas formalidades e apenas
estavam felizes de se rever. "Vamos ter uma reuniãozinha da antiga galera,
não é?"
Tompinhão-Coelho
não entendeu. Estariam marcando algo e não tinham avisado a ele? Afinal, ele só
voltara a Macuco para trabalhar no jornal de Furquinha e tinha sido uma
completa surpresa encontrar Samurai boiando num copo. Então, se algum churrasco
fosse rolar, com certeza era pelas suas costas. Bem feito, quem mandou virar
vegetariano? "Não tô sabendo, vocês combinaram quando?"
"O
universo combinou por nós, Coelhito. Está chegando todo mundo. Eu, você,
Zelito, Mussum, Satã..."
Tompinhão-Coelho
nunca fora uma pessoa de medir palavras, mas a intimidade e o tempo fizeram com
que ele quase gaguejasse nas próximas: "Todo mundo? Até o Lagar..."
"Todo
mundo tá chegando, Coelho. Dá pra sentir no ar. Lagarto também não demora a
chegar", e Samurai silenciou por um momento, no qual Tompinhão-Coelho, que
nunca fora capaz de decifrar as expressões, encharcadas de álcool ou não, do
amigo, reconheceu uma ponta de saudade do passado comum a eles. "E quando chegar, ele deve pedir pra
dormir na sua casa. Se fodeu."
Tompinhão-Coelho
ia dizer alguma coisa quando Samurai lhe sorriu novamente: "Sabe quem mais
está na cidade? Seu xará."
Tomás
Pinhão nunca tivera um xará na cidade, muito menos entre o reduzido círculo de
amigos que amealhou na juventude, então não tinha idéia do que falava Samurai.
"Xará, meu?"
"Porra,
passou aqui agorinha, quase que uma sombra que te antecipou. Dentuço igual a
você (você não tem mais trauma disso, né?, deixou crescer o bigode, estufou o
peito, os ombros estão mais altos... Tá fazendo academia, é?), infinitamente
mais filho da puta e mais baixo também. Quem poderia ser?"
Então,
Tompinhão-Coelho soube de quem se tratava. No ônibus, enquanto voltava para
Macuco pela primeira vez em quase três anos, reparara nos outros passageiros,
um hábito do fotógrafo sempre em busca de novos tipos estranhos para sua
coleção mental particular, encontrando um peculiar casal de manetas de cotocos
dados (bimanetas, ela só tinha a mão até a altura de onde cresciam os dedos,
ele nem isso - tristes casos de gente que precisou buscar quinas de mesa ou
auxílio amigo para conseguir se masturbar com alguma eficácia), uma moça
tristonha tirando vidro do cabelo, um rapaz magro lendo um livro onde ele era o
personagem, uma criança que tocava o nariz com a ponta da língua, um hippie
louco bebendo o que ele julgou ser álcool-combustível com um pouco d'água numa
garrafinha plástica e uma pessoa com quem ele, Tompinhão-Coelho, fizera muitos
negócios no passado, Pernalonga, o traficante pé-rapado mais maluco e queimador
de filme da cidade.
"'Bora
queimar um beque?", falou Pernalonga, materializando-se (algo bastante
comum naquele dia) ao lado de Tompinhão-Coelho e Samurai, explanando pra geral
o bonde da maconha.
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