sexta-feira, 23 de maio de 2014

Seqüência 15.5 - Pernalonga deixa a gente muito doida muito doida



Pernalonga, tomando conta do assunto, declinou de toda a maconha oferecida. A dele bastava. Tirou onda o filho da puta. “Tirou onda o filho da puta”, falou Francisquim. Precisaram de uma tesoura para cortar os camarões, que logo tomavam forma nas habilidosas mãos de Pernalonga. Afinal, ele era o cara. “Tem que tirar onda o filho da puta”, falou Francisquim. Pernalonga era famoso por apertar os baseados mais caprichados. O esmero dedicado era dispensado até às mínimas pernas de grilo. Uma lenda de olhos pequenos e vermelhos. E orgulhoso disso.
Nessas horas Francisquim, antecipando o que estava para acontecer, até se lamentava ter de se envolver com tipos como Pernalonga. Mas também sabia que, apesar de ser um boçal atrapalhado com uma incrível predisposição às vicissitudes da fortuna, estava ali uma pessoa confiável e com tino para negócios, que nesse caso era vender maconha, mas não àquele público ali, olhos vidrados numa maconha verdinha que nunca tinham visto antes, já que tudo que andavam a fumar tinha gosto e cheiro de amônia e latejavam as pálpebras e ou então enfiavam na gente um sonho danado, e que agora, ali, de frente pr’aquele baseadão verdinho em seda transparente, estragava os planos todos, que era, afinal, pra Pernalonga não contar pra ninguém de Macuco que ele tinha em mãos essa maconha (que era justamente a onda que ele estava tirando), “e puta que me pariu”, falou Francisquim, “ele vai estragar tudo”, continuou, “e só pra mostrar que tem um pau maior que os outros, como sempre”.
Francisquim arrastou Dario para perto da mesa, onde Pernalonga habilmente lambia o baseado de uma extremidade a outra, selando um longo canudo, bem firme, que logo estava pegando fogo e passando de mão em mão. E enquanto fumavam, as pessoas que tinham oferecido parte de sua maconha para o baseadão, notavam que havia algo de diferente naquela erva, que não era a bosta de vaca malhada e fedendo a urina que eles andavam a consumir, que era, para quase todos ali, uma experiência nova no que tange à fumibilidade. Enfim, era o paraíso disfarçado em cigarro de maconha.
E Pernalonga era quem tinha tal maravilha.
E Francisquim desgostou horrores do que estava acontecendo ali, embora salivasse por dar um pau naquele baseadão que estava chumegando e correndo de mão em mão e boca em boca. Um tapa bastou para balançar Dario. Francisquim, mais experiente, encharcou-se n’fumaça. Alguém mudou o cd e logo Gil entrou com A Novidade que abria o Unplugged, um som que combinava bem com o clima, embora um ou outro já começasse a debandar, assustado com o baseado, para cheirar num lugar mais discreto. Outros, mais jovens, ainda encaravam o que já começava a se tornar uma bagana. Chiquim vigiava Pernalonga, que se gabava do fumo perfeito, mas que ainda não o oferecia a ninguém. Tenho Sede diminuiu o ritmo dos acontecimentos. Beleza, ainda que restrita – uma vontade de morte, então. Alguém farejava isso, pod’s crer. Mas ficava só assim, naquela depressãozinha de cidade pequena, um desejo de mudança que não vem, q’não cai do céu, afinal. Então, alguém enche o pulmão, esfrega os braços, estimulando a circulação, se levanta e vai. E, pronto. salvou-se uma vida.
Mas esse que se salvou e se foi e foi sê feliz, esse não é ninguém, não. É outro cara. De outra história. Pra outra pessoa contar. Que Pernalonga ainda tava ali com seu enorme cigarro semi-transparente de maconha, e Francisquim continuava vigiando, puto da vida, e o Dario tava procurando um lugar pra sentar e desmaiar que já tava bêbado e chapado de tudo e queria mais era desmoronar. “Ê ê mundo dá volta, camará!”

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Seqüência 15.4 - Darío conhece a gente muito doida



            Dario se imprensou no banco de trás, onde outros três homens já estavam sentados. Pernalonga pôs-se no banco da frente, do lado de uma mulata magrela, que Dario acreditou não ser a namorada do motorista, já que aceitava de bom grado os chamegos de seu amigo. Afinal, não podia explicar muito bem, nem para si mesmo, porque havia entrado no carro, mas os temores e suspeitas de Dario foram logo descartados quando um dos rapazes imprensados nos bancos de trás com ele sacou do bolso um baseado e, destacando-se do imprensodromo, inclinou-se para frente e acendeu o cigarro - com as duas mãos protegendo a chama do vento que entrava a toda, “porque só tem filho da puta nesse carro e todo mundo quer fumar, mas ninguém é capaz de fechar a porra do vidro”, explicou o dono da maconha, que agora passava a bola para Dario.
            Quando chegou na casa onde rolava a festa, Dario já estava chapado e meio bêbado por conta d’uma garrafa de Conhaque que havia rolado pelas bocas durante a viagem. Enquanto descia do carro, ligeiramente amparado por um dos camaradas do banco de trás, Dario viu Pernalonga desaparecendo a frente, rapidamente olhando para trás, um brilho tosco nos dentes enegrecidos e rachados, Sérgio Sampaio tocando Rosa Morta ou reflexões de um executivo, música pesadíssima que recordava a Dario de um período da faculdade em que tinha ficado parado, ligeiramente surtado, ainda que contido, bêbado, ainda que chapado, estudando, ainda que incapaz.
À Pernalonga a música não parecia porra nenhuma e na verdade estava a fim era de ouvir um funk tocando, que já tinha visto uma crioula gostosa dando trela num canto e queria ver a dita dançando bem juntinho com ele. Mas até que a música seguinte, do cd Cruel, Polícia, Bandido, Cachorro, Dentista, Pernalonga até gostou, mas não tanto que iria sair por aí perguntando o que ia tocar.
A estrutura cultural de Pernalonga não era das mais vastas, mas o tipo era esperto o bastante para se fazer interessante, e aprendera a citar uma ou outra frasezinha que deixasse calcinhas e cus molhados. Mas só a esses desatentos, Pernalonga interessava – e ele também só se interessava pela tríade babaquara-playboy-piranha; sendo assim, o conjunto estava feito.
“E você, rapaz? Qual foi?”
Dario tinha ficado sozinho, ainda abraçado à bolsa com as entrevistas e textos de Pedro Conselheiro. A voz vinha do alto de um galho – uma figura magra e com roupas (bermuda e camiseta) curtas e largas: era Francisquim, cabelos soltos, sorriso no rosto, sorriso com baseado. Pulou para perto de Dario, escorregando no chão de terra, só não se estabacando por completo porque Dario segurou-o pelo braço, largando, enfim, da tal bolsa.
- Opa, tá tudo bem, respondeu Francisquim, ajeitando-se, ficando de pé, ainda com o sorriso, ainda com o baseado. Enrolado em celulose, ainda apagado, o cigarro de maconha brilhava na escuridão. – Vai um fuminho, aí?
Dario aceitou, ainda silente.
- Quem é você, irmão.
Dario respondeu. Apenas nome, sem sobrenome.
Francisquim insistiu, pegando de volta o baseado: - E d’onde você é, meu camaradinha?, perguntou em meio a uma grande baforada que resultou em tosse.
Rindo, explicou-se, sem bem saber por quê: - Foi esse pulo. Fiquei agitado. Quis te dar um susto. Conte, Dario. Conte-me tudo. Que faz em Macuco? Tanto lugar para se ir nesse mundo. Que diabos você tá fazendo aqui?
Dario ia começar a falar. Ia contar a história do escritor desaparecido, badulaque literário da classe média carioca dos anos setenta; Dario poderia falar horas e horas de Pedro Conselheiro, de como ele havia se juntado a umjornalista pré-gonzo, e de como os dois haviam se resolvido a filmar numacidade do interior uma terrível história de vingança sobrenatural – a natureza, maldita, voltando-se contra os homens, agindo além da razão, concedendo, enfim, a grande dádiva do mundo, que é o desaparecimento, o esquecimento, a fagulha de memória que falha em brotar nos olhos verdes de uma bela mulher... Dario poderia falar sobre tudo isso, mas Francisquim puxou-lhe pelo braço, mostrando com o baseado o grupo de homens, piranhas e moleques que se reuniam numa mesa bem na frente da varanda (a mesma onde, alguns anos antes, Pernalonga - que era o destaque do grupo reunido à mesa - notara uma carcaça de cachorro morto sob a mesa, e transtornou-se quando, dias depois, notou ainda o cão a apodrecer ali), onde alguém havia trazido um rolo de celulose que foi puxado em cerca de vinte e cinco centímetros e agora era exibido como que num pedido para que todos compartilhassem um pouco de sua erva.
Francisquim chamava a atenção para Pernalonga, que nesse momento enfiava a mão direita dentro das calças, tirando da cueca um saquinho com alguns camarões - "coisa linda de se ver", disse Francisquim, mal escondendo um fio de baba que lhe brotava no canto do lábio.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Seqüência 15.3 -



            Inerente a situações esquisitas das quais experiência e sorte sempre lhe propiciavam uma saída milagrosa, Dario não se importou de acompanhar aquele estranho maltrapilho com cara de quem nãotomava um banho há alguns dias. Parecia-lhe muito simples que ao chegar numa cidade onde não conhecia ninguém, logo se afeiçoasse por alguma figura perdida e carente que, em troca da companhia, só lhe pediria as orelhas brevemente emprestadas. Diabos, pelo menos não teria que pagar hospedagem.

            ...e de fato não era o verão de 87, que ele não tinha passado pelo Verão da Lata nem nada, ele sempre mencionaria isso em conversas, lamentando a ausência de uma maconha como aquela em sua formação, ao passo que Pernalonga chegou a falar de que ele sim já era um maconheiro velho e que bem era capaz de reconhecer outro, e foi por isso, também, que acabou convidando o outro para vir até sua casa e foi logo falando, espalhafatoso e cheio de marra que era maconheiro velho, que tinha fumado da Lata, e fazia e acontecia, e Dario já começava a se perguntar se aquilo não ia dar em merda, que bem podia ver na linguagem corporal do outro que era um sujeito problemático, e já estava para declinar do convite, quando, a toda, um Gol passou pelos dois, deu uma freada brusca seguida de ré, e parou ao lado de Pernalonga. A janela se abriu e do interior do veículo surgiu uma mão negra, indicador para frente e polegar para o alto.
            - PAU!
            Estalidou o motorista.
            Dario carregava uma mochila e uma bolsa atravessada no ombro, foi esta que ele abraçou, nervoso, enquanto o ocupante do veículo punha a cabeça pra fora, na direção de Pernalonga, que se abaixava para falar com ele.


segunda-feira, 19 de maio de 2014

Seqüência 15.2 - Armando o bote



            E no segundo dia de dezembro, com a chuva fina caindo e os pisca-piscas ligados, prenúncios de um Natal que encheria as ruas com os moradores bissextos, gente que caçava vida fora dali, gente que só podia caçar a vida ali - os que iam, os que vinham, todos juntos formavam uma multidão que Pernalonga não era hábil em lidar.
            Seguiam os dois, Pernalonga e seu hóspede, Dario Vuturuá, sob a chuva, com as luzes de Natal refletindo nas poças por toda a rua, Pernalonga ligeiramente alterado pelo álcool, falando um pouco mais alto que o costume, interessado em ser o mais simpático possível ao outro, que não deveria, não poderia (não iria!, e ponto final) se hospedar na Pousada Central, que ele não poderia ter noites de sono adequadas naquele pulgueiro, não, que era melhor ficar bem hospedado, e por isso Dario iria dormir na casa de seu tio (Pernalonga ainda se perguntava se iria contar a Dario que seu tio tinha recém-falecido), que era melhor, principalmente que ele estava a sério na cidade, que tinha uma busca a ser feita (logo, Pernalonga iria se calar, pararia de falar tanto de si, a confiança se esgueiraria para fora do seu corpo, tal tentáculos, pegando Dario, aproximando-o, fazendo-o se abrir, contar em detalhes quem era aquele Pedro Conselheiro, porque ele o estava procurando, e então falaria de Hosana e teria sua conquista), que o que Pernalonga também não queria era que Dario ficasse naquele quarto sujo e recebesse a visita da moça do bar, batendo na sua porta, perguntando se ele estava confortável, se não queria companhia, se poderia se sentar, tirar as roupas...
            Pernalonga esfregou os olhos, soltando um longo suspiro. Afastou as imagens da moça nua cavalgando o outro. Tinha que se concentrar, agora. Levaria o tal Dário até a casa do tio. O rapaz poderia dormir no quarto recentemente vago e Pernalonga aproveitaria para fuçar algumas gavetas, localizar a carteira do falecido e torcer para que não tenha mudado a senha do cartão do banco, que assim se garantiria na pensão que nem mesmo sabia de onde vinha, que era só uma coisa que tava sempre ali, agora, finalmente, recebida por inteiro, que não ia ter mais que dividir aquele dinheiro com ninguém, e já até se animava (à toa, que afinal, com tod’aquela maconha nova guardada no congelador, ele só precisava vender e voltava a ficar bem de grana, até melhor do que com mais a metade de uma pensão miúda – mas como quem passa por apertos e tormentos bem sabe, no fundo, Pernalonga ficava era feliz de ter aquele mísero seguro), quando lembrou-se que ainda tinha que matar Dario, que não podia deixar ele circulando por aí e comendo a sua menina, não.
            Assim sendo, iria matar o cara assim que ele caísse no sono. E depois pensaria em como se livrar do corpo.

domingo, 18 de maio de 2014

Seqüência 15 - pausa para respirar



            Enfie uma linha fina através dos espaços brancos da calota de um Gurgel. Prenda o carretel junto ao portão da fábrica deste veículo. Agora vislumbre o agitado carretel girar sobre a própria base, sôfrego, correndo sem sair do lugar, todas as idas e vindas deste carro em particular cruzando pontos e destinos, uma emaranhada teia de memórias ganhando vida com um simples movimento, as diferentes vibrações trazendo ao presente momentos simples como uma viagem até uma determinada esquina para levar uma paixão até a casa da tia e, trinta anos depois, a mesma esquina, imersa em lembranças d’outra época, e de repente já não é mais o passado solitário, tampouco o presente apressado, é outra coisa, uma quarta vertente de tempo, algo além, quase como se abarcasse o tudo, a Kundalini desenrolada, a língua pressionada contra o palato, o gozo contido, represado e implodido, o universo se comunicando do útero para fora, como a vida, num desembucetamento final. Assim é o todo. Essas linhas que se cruzam, essas vibrações que não cessam, assim funciona a vida. Nessa coisa confusa, que alguns apelidam de caos, outros ousam chamar de destino, foi aí, nessa coisa, nessa conta, que Pernalonga encontrou Dário. O que aconteceu é depois dessas complicações que, vez por outra, o caos, o destino e a vida cismam de nos enfiar goela abaixo.

sábado, 17 de maio de 2014

Seqüência 14 – EXT. – CAMPO ABERTO – NOITE



JORGE TADEU, LAGARTO, ENTRESPINHOS, O CORDEIRENSE-GENTE-BOA e SURIQUITO estão sentados ao redor de uma fogueira. As sombras deles no fundo, sobre o barranco, é falsa – como um kabuki, um teatro de bonecos que, nas sombras passam por várias aventuras, enquanto os cinco acendem e repassam baseados apagados e babados.

        JORGE TADEU
Parei de usar sorine cheirando maconha.

        ENTRESPINHOS
Cumequié unegoci?

        JORGE TADEU
A fumaça, lógico.

        O CORDEIRENSE-GENTE-BOA
Ah, a fumaça, pô. Ele tá fumando pelo nariz e fala assim, todo normal, igual que tivesse fazendo anúncio no intervalo do Domingo Legal. Falando nisso, mas sabendo que não tem nada a ver, você viu a roupa nova do Batman?

        LAGARTO
Que Batman que nada, aquilo é uma bichona! E tem mais um negócio, cês viram que ta dando merda na Rússia, né? Cês tem que se ligar, que o bicho vai pegar, o cachorro vai sacudir os pelos e...

        SURIQUITO
E você vai calar a boca, caralho. Deixa o cara explicar ali, que eu fiquei curioso com esse negócio de cheirar maconha.

        O CORDEIRENSE-GENTE-BOA
Não, ele ta falando como se fosse um método pras pessoas largarem o vício.

        JORGE TADEU
Não tôu falando nada disso, seu cordeirense viado.

        O CORDEIRENSE-GENTE-BOA
Que porra é essa, hein?

        ENTRESPINHOS
Não, depois cêdiz qporraéssa, agorexplicaonegócio da maconhpelo nariz.

        LAGARTO
Não, pêra, que antes eu tenho uma fofoca.

       ENTRESPINHOS
Aicaralho. Não podesperar?


        LAGARTO
Não, que eu tô chapado e vou me esquecer.

        JORGE TADEU
Ta, então conta que eu fiquei curioso.

        SURIQUITO
E se não for pra falar de coisa ruim, igual essas maluquices que você e Coelho ficam falando de zumbi e essas porras.

        LAGARTO
Pois é muito mais estranho, maluco. Eu fui a Friburgo almoçar com um padre ai, entregar a salada pra ele e tal. E fui de ônibus, né? No sapatinho. Quando voltei, uma mulher grandona sentou atrás de mim, eu vi ela passando enquanto entrava, sabe? Tum, tum, tum. Coisa de doido. E aí, no meio da viagem, do nada, me bate no ombro

 (tudo isto pode ser representado pelas sombras)

“Você não é Romerinssuriquitoooo?”, ela me perguntou. E eu olhei pra trás, ouvindo aquela voz grossa, e vi uns lábio inchado e uns peitos que não eram peitos e... porra, bicho, era o Robertinssilvêra. Tra-ve-cô!

        ENTRESPINHOS
Agora que aquele Pernalonga vai comer pra valer.

Todo mundo cai na gargalhada. Jorge Tadeu tira o baseado da boca e rasga a piteira, que fica colada no lábio. Ele pega o papel e joga o beque na fogueira pro espanto de todos, inclusive ele mesmo. Lagarto saca outro baseado.
Parecia o paraíso. E ninguém lembrou que a história de Jorge Tadeu tinha ficado sem fim.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Seqüência 13.2 Darío se desconcentra



            Dario tomou um gole de café frio e arrancou a folha da máquina. Mediu o desenho que se formava entre os espaços embranco da página, o conjunto de insetos invisíveis que circula pela página aoredor das palavras, comendo-as aos poucos. Mediu e disse a si mesmo que o monstrinho estava agradável. Leu em voz alta alguns trechos, com a timidez que lhe é habitual em relação à própria voz, que costumava se apagar tão facilmente quando o assunto ficava sério.
            Não tinha muita certeza quanto ao último trecho do texto. Acontecia que Dario tinha problemas para se destrançar dos rumos da prosa que ele ia tecendo como ficcionista – e desde que a grana acabara e ele teve de se virar como biografo, aí é que as coisas estavam ficando confusas para valer. Alguém lhe propusera que escrevesse a biografia de um jornalista das antigas que quase ninguém ouvira falar, mas que era um sujeito dos bons.
            O “alguém” que o contratou surgiu pela primeira vez numa noite em que Dario enchia a cara de uma cerveja aguada (a única que uma boa alma se dispôs a lhe pagar) em um bar na Lapa. O “alguém” surgiu na forma de um velhinho camarada, barbudo e óculos de aros grossos, sorriso generoso embora carente de dentes, uma voz grossa num corpo franzino. Fumava, tossia. Falava assim: - Você tem feito o que? Não, não me olhe assim. É com você mesmo que eu tô falando. Rapaz, sente aqui. Me conte, gosta disso de escrever a vida dos outros e deixa-los assinar e ter que satisfazer todo aqueles egos? E nem consegue mais tempo pra escrever a sua vida, não é? Vive só a deles. Escreve como que um médico que vasculha entre os neurônios dessas socialites metidas a besta e esses políticos de merda... Não foi por isso que largou a profissão de jornalista? Você se lembra de quando decidiu que era isso que ia fazer? Jornalismo?
            Dario já tinha bebido mais do que um pouco quando foi encontrado pelo “alguém”, daí que sua participação no diálogo não passou de um ou outro “aham” e sins e nãos, logo capitaneados apenas em balanços regulares da cabeça, concordando, discordando ou, quando levantava os ombros, dando a entender de que não tinha idéia. E o “alguém” não parava de falar, mas aquele papo de por que é que Dario tinha escolhido o jornalismo como profissão o meteu no passado, justamente numa entrevista que ele encontrou na escola, de um jornalista chamado Antonio Izabel, e que ele só começou a ler porque a página abria com uma tira de quadrinhos muito bacana, que atraiu e muito o jovem Dario, mostrando uma dupla de idosos que em apenas três painéis sofriam alterações em todos os pontos do quadro, exceto nos rostos e mãos, enquanto que as roupas, cenário e luz se alteravam; o texto era minúsculo e se misturava à costura das roupas, que variavam entre modelos clássicos, futuristas e, no último quadro, em tanguinhas de crochê ao gosto do Gabeira.
            Dario não sabia, mas a primeira impressão da revista, em um jornal dominical, havia ferrado com o lance do texto entrelaçado com os tecidos, deixando tudo borrado. Só ali, na revista cuja leitura iria mudar sua vida, a tal página estava sendo publicada com qualidade (e ampliada), possibilitando a leitura do texto, que era de uma tolice extrema, mas provavelmente muito corajosa na época da sua publicação, na década de 70, e também provocativa o suficiente para encantar um moleque tímido mal entrado na puberdade. Mas o quadro foi só pra chamar a atenção de Dario, que resolveu ler a entrevista, sentado debaixo da janela que dava pra coordenadoria do turno da tarde (misteriosamente cada turno tinha sua própria salinha), e que roubou a revista, mesmo sabendo que tinha que devolvê-la para a biblioteca.
            Dario achou muito foda que aquele cara com cara de turco estivesse ali, falando que na juventude tudo que fazia era beber, não comer ninguém além de puta e arrumar dinheiro na sinuca ou no jogo de cartas. O homem dizia que conforme foi ficando mais velho viu que era daquele jeito que tinha que viver pra escrever o que tinha ganas de escrever. Ora!, vejam só que estrago o Antonio Izabel foi fazer, dando uma entrevista bêbado, onde contava que só tinha apelado pro jornalismo porque não sabia fazer outra que escrever, e que no jornalismo, mesmo escrevendo o que não queria, ganhava pra escrever. E Dario que se achava uma beleza com suas redações poéticas e sensíveis de Ensino Médio, meteu-se a querer falar como as pessoas de gente grande. E foi.
            Foi tanto que parou ali, ouvindo “alguém” falar justamente sobre Antonio Izabel, o que Dario achou uma puta duma coincidência, que afinal estava ele ali, bêbado a mil por hora, tendo uma inundação fora do tempo de pensamentos que o remetiam àquela leitura da entrevista, anos atrás, com o agora, onde “alguém” lembrava o restante da história de Antonio Izabel, que uma hora cansou-se de contar histórias dos outros e abandonou o jornalismo de vez – ou, ao menos, o jornalismo convencional, do dia-a-dia, já que existem muitos que defendem que sua obra literária bem pode ser classificada como new-journalism. Mas lançou apenas três livros, todos dedicados à fragmentos de um microcosmos de violência, prostituição, jogo, vidas e situações humanas que não tinham tanto espaço na mídia convencional – Dario lembrou-se de que Antonio Izabel agradecia seu contato com a obra de Lima Barreto para o seu despertar como homem dentro do escritor, que a partir daquele momento, liberto da opressão editorial e do compromisso com o fechamento da edição para falar das pessoas que como ele só seguiam adiante dentro da vida e fora da totalidade, que afinal “cada um é cada um e não tem nada disso de que temos os destinos colados uns aos outros”, dizia Antonio na tal entrevista.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Seqüência 13 - Darío se concentra



            A concentração de Dario se espatifa como prato em casamento grego. Era como se um carro estacionasse em seu quarto e meio. O cômodo alugado ficava sobre a muito fina lajota de um bar que desde que asfaltaram a rua, passou a fica abaixo do nível da mesma, deixando que qualquer um pouco mais alto só precisasse apoiar-se na ponta dos pés para conferir o que acontecia no quarto – que normalmente não passava de Dario datilografando sem parar – ou fingindo que datilografava, quando na verdade estava a ponto de mergulhar na cama (onde tinha que ficar sentado para escrever – sem encosto para as costas), admitindo para o mesmo Universo de Zacarias, que era impossíncosto para as costas), admitindo para o mesmo Universo de Zacarias, que era imposs sem vel continuar escrevendo. Principalmente que o carro parado ali do lado tinha a porta do motorista aberta, de onda escapava um axé famoso do último carnaval, que já havia tocado o bastante para estar fora de moda, mas que por isso mesmo invadia sem pudores os ouvidos de Dario:

Nêgo, meu nêgo
Cadê aquela nota que cê prometeu?
Você só apareceu
querendo meu rêgo

Meu nêgo,
A conta tá pra vencer, a luz vai apagá
Você disse que ia pagá
Mas só vem aqui querendo ooo

Meu nêgo,
Isso tem que parar, eu não vou gozar,
deixa disso e
tira a mão do meeeeu rêgo!

            A música foi o bastante para tirá-lo do ar. Como reagir?
            Voltar a escrever, agora, só com muita força de vontade. Viver em cima de um bar e andar seriamente inclinado a se embriagar de cachaça todos os dias dos últimos meses não contribuía muito para a força de vontade.
            Dario passou a mão pelos cabelos, num movimento contínuo, da testa à nuca, mas não sem coçar o couro cabeludo durante o trajeto. Impregnado com a música, restou-lhe apelar para uma última ponta que tinha guardado entre as páginas de um livro do Sábato. Ou seria do Burroughs? Ah, sim, ali estava. O verde violentou o muro e as páginas amassaram o diminuto baseado. Em pensamento dedicou aquelas breves tragadas a Ignácio de Loyola Brandão. Amém. Voltou para a máquina de escrever.
            A música que se danasse.