Dario tomou um gole de café frio e
arrancou a folha da máquina. Mediu o desenho que se formava entre os espaços embranco da página, o conjunto de insetos invisíveis que circula pela página aoredor das palavras, comendo-as aos poucos. Mediu e disse a si mesmo que o
monstrinho estava agradável. Leu em voz alta alguns trechos, com a timidez que
lhe é habitual em relação à própria voz, que costumava se apagar tão facilmente
quando o assunto ficava sério.
Não tinha muita certeza quanto ao
último trecho do texto. Acontecia que Dario tinha problemas para se destrançar
dos rumos da prosa que ele ia tecendo como ficcionista – e desde que a grana acabara
e ele teve de se virar como biografo, aí é que as coisas estavam ficando
confusas para valer. Alguém lhe propusera que escrevesse a biografia de um
jornalista das antigas que quase ninguém ouvira falar, mas que era um sujeito
dos bons.
O “alguém” que o contratou surgiu
pela primeira vez numa noite em
que Dario enchia a cara de uma cerveja aguada (a única que
uma boa alma se dispôs a lhe pagar) em um bar na Lapa. O “alguém” surgiu na
forma de um velhinho camarada, barbudo e óculos de aros grossos, sorriso
generoso embora carente de dentes, uma voz grossa num corpo franzino. Fumava,
tossia. Falava assim: - Você tem feito o que? Não, não me olhe assim. É com
você mesmo que eu tô falando. Rapaz, sente aqui. Me conte, gosta disso de
escrever a vida dos outros e deixa-los assinar e ter que satisfazer todo
aqueles egos? E nem consegue mais tempo pra escrever a sua vida, não é? Vive só
a deles. Escreve como que um médico que vasculha entre os neurônios dessas
socialites metidas a besta e esses políticos de merda... Não foi por isso que
largou a profissão de jornalista? Você se lembra de quando decidiu que era isso
que ia fazer? Jornalismo?
Dario já tinha bebido mais do que um
pouco quando foi encontrado pelo “alguém”, daí que sua participação no diálogo
não passou de um ou outro “aham” e sins e nãos, logo capitaneados apenas em
balanços regulares da cabeça, concordando, discordando ou, quando levantava os
ombros, dando a entender de que não tinha idéia. E o “alguém” não parava de
falar, mas aquele papo de por que é que Dario tinha escolhido o jornalismo como
profissão o meteu no passado, justamente numa entrevista que ele encontrou na
escola, de um jornalista chamado Antonio Izabel, e que ele só começou a ler
porque a página abria com uma tira de quadrinhos muito bacana, que atraiu e
muito o jovem Dario, mostrando uma dupla de idosos que em apenas três painéis
sofriam alterações em todos os pontos do quadro, exceto nos rostos e mãos,
enquanto que as roupas, cenário e luz se alteravam; o texto era minúsculo e se
misturava à costura das roupas, que variavam entre modelos clássicos,
futuristas e, no último quadro, em tanguinhas de crochê ao gosto do Gabeira.
Dario não sabia, mas a primeira
impressão da revista, em um jornal dominical, havia ferrado com o lance do texto
entrelaçado com os tecidos, deixando tudo borrado. Só ali, na revista cuja
leitura iria mudar sua vida, a tal página estava sendo publicada com qualidade
(e ampliada), possibilitando a leitura do texto, que era de uma tolice extrema,
mas provavelmente muito corajosa na época da sua publicação, na década de 70, e
também provocativa o suficiente para encantar um moleque tímido mal entrado na
puberdade. Mas o quadro foi só pra chamar a atenção de Dario, que resolveu ler
a entrevista, sentado debaixo da janela que dava pra coordenadoria do turno da
tarde (misteriosamente cada turno tinha sua própria salinha), e que roubou a
revista, mesmo sabendo que tinha que devolvê-la para a biblioteca.
Dario achou muito foda que aquele
cara com cara de turco estivesse ali, falando que na juventude tudo que fazia
era beber, não comer ninguém além de puta e arrumar dinheiro na sinuca ou no
jogo de cartas. O homem dizia que conforme foi ficando mais velho viu que era
daquele jeito que tinha que viver pra escrever o que tinha ganas de escrever.
Ora!, vejam só que estrago o Antonio Izabel foi fazer, dando uma entrevista
bêbado, onde contava que só tinha apelado pro jornalismo porque não sabia fazer
outra que escrever, e que no jornalismo, mesmo escrevendo o que não queria, ganhava
pra escrever. E Dario que se achava uma beleza com suas redações poéticas e
sensíveis de Ensino Médio, meteu-se a querer falar como as pessoas de gente
grande. E foi.
Foi tanto que parou ali, ouvindo
“alguém” falar justamente sobre Antonio Izabel, o que Dario achou uma puta duma
coincidência, que afinal estava ele ali, bêbado a mil por hora, tendo uma
inundação fora do tempo de pensamentos que o remetiam àquela leitura da
entrevista, anos atrás, com o agora, onde “alguém” lembrava o restante da história
de Antonio Izabel, que uma hora cansou-se de contar histórias dos outros e
abandonou o jornalismo de vez – ou, ao menos, o jornalismo convencional, do
dia-a-dia, já que existem muitos que defendem que sua obra literária bem pode
ser classificada como new-journalism.
Mas lançou apenas três livros, todos dedicados à fragmentos de um microcosmos
de violência, prostituição, jogo, vidas e situações humanas que não tinham
tanto espaço na mídia convencional – Dario lembrou-se de que Antonio Izabel
agradecia seu contato com a obra de Lima Barreto para o seu despertar como
homem dentro do escritor, que a partir daquele momento, liberto da opressão
editorial e do compromisso com o fechamento da edição para falar das pessoas
que como ele só seguiam adiante dentro da vida e fora da totalidade, que afinal
“cada um é cada um e não tem nada disso de que temos os destinos colados uns
aos outros”, dizia Antonio na tal entrevista.
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