quinta-feira, 15 de maio de 2014

Seqüência 13.2 Darío se desconcentra



            Dario tomou um gole de café frio e arrancou a folha da máquina. Mediu o desenho que se formava entre os espaços embranco da página, o conjunto de insetos invisíveis que circula pela página aoredor das palavras, comendo-as aos poucos. Mediu e disse a si mesmo que o monstrinho estava agradável. Leu em voz alta alguns trechos, com a timidez que lhe é habitual em relação à própria voz, que costumava se apagar tão facilmente quando o assunto ficava sério.
            Não tinha muita certeza quanto ao último trecho do texto. Acontecia que Dario tinha problemas para se destrançar dos rumos da prosa que ele ia tecendo como ficcionista – e desde que a grana acabara e ele teve de se virar como biografo, aí é que as coisas estavam ficando confusas para valer. Alguém lhe propusera que escrevesse a biografia de um jornalista das antigas que quase ninguém ouvira falar, mas que era um sujeito dos bons.
            O “alguém” que o contratou surgiu pela primeira vez numa noite em que Dario enchia a cara de uma cerveja aguada (a única que uma boa alma se dispôs a lhe pagar) em um bar na Lapa. O “alguém” surgiu na forma de um velhinho camarada, barbudo e óculos de aros grossos, sorriso generoso embora carente de dentes, uma voz grossa num corpo franzino. Fumava, tossia. Falava assim: - Você tem feito o que? Não, não me olhe assim. É com você mesmo que eu tô falando. Rapaz, sente aqui. Me conte, gosta disso de escrever a vida dos outros e deixa-los assinar e ter que satisfazer todo aqueles egos? E nem consegue mais tempo pra escrever a sua vida, não é? Vive só a deles. Escreve como que um médico que vasculha entre os neurônios dessas socialites metidas a besta e esses políticos de merda... Não foi por isso que largou a profissão de jornalista? Você se lembra de quando decidiu que era isso que ia fazer? Jornalismo?
            Dario já tinha bebido mais do que um pouco quando foi encontrado pelo “alguém”, daí que sua participação no diálogo não passou de um ou outro “aham” e sins e nãos, logo capitaneados apenas em balanços regulares da cabeça, concordando, discordando ou, quando levantava os ombros, dando a entender de que não tinha idéia. E o “alguém” não parava de falar, mas aquele papo de por que é que Dario tinha escolhido o jornalismo como profissão o meteu no passado, justamente numa entrevista que ele encontrou na escola, de um jornalista chamado Antonio Izabel, e que ele só começou a ler porque a página abria com uma tira de quadrinhos muito bacana, que atraiu e muito o jovem Dario, mostrando uma dupla de idosos que em apenas três painéis sofriam alterações em todos os pontos do quadro, exceto nos rostos e mãos, enquanto que as roupas, cenário e luz se alteravam; o texto era minúsculo e se misturava à costura das roupas, que variavam entre modelos clássicos, futuristas e, no último quadro, em tanguinhas de crochê ao gosto do Gabeira.
            Dario não sabia, mas a primeira impressão da revista, em um jornal dominical, havia ferrado com o lance do texto entrelaçado com os tecidos, deixando tudo borrado. Só ali, na revista cuja leitura iria mudar sua vida, a tal página estava sendo publicada com qualidade (e ampliada), possibilitando a leitura do texto, que era de uma tolice extrema, mas provavelmente muito corajosa na época da sua publicação, na década de 70, e também provocativa o suficiente para encantar um moleque tímido mal entrado na puberdade. Mas o quadro foi só pra chamar a atenção de Dario, que resolveu ler a entrevista, sentado debaixo da janela que dava pra coordenadoria do turno da tarde (misteriosamente cada turno tinha sua própria salinha), e que roubou a revista, mesmo sabendo que tinha que devolvê-la para a biblioteca.
            Dario achou muito foda que aquele cara com cara de turco estivesse ali, falando que na juventude tudo que fazia era beber, não comer ninguém além de puta e arrumar dinheiro na sinuca ou no jogo de cartas. O homem dizia que conforme foi ficando mais velho viu que era daquele jeito que tinha que viver pra escrever o que tinha ganas de escrever. Ora!, vejam só que estrago o Antonio Izabel foi fazer, dando uma entrevista bêbado, onde contava que só tinha apelado pro jornalismo porque não sabia fazer outra que escrever, e que no jornalismo, mesmo escrevendo o que não queria, ganhava pra escrever. E Dario que se achava uma beleza com suas redações poéticas e sensíveis de Ensino Médio, meteu-se a querer falar como as pessoas de gente grande. E foi.
            Foi tanto que parou ali, ouvindo “alguém” falar justamente sobre Antonio Izabel, o que Dario achou uma puta duma coincidência, que afinal estava ele ali, bêbado a mil por hora, tendo uma inundação fora do tempo de pensamentos que o remetiam àquela leitura da entrevista, anos atrás, com o agora, onde “alguém” lembrava o restante da história de Antonio Izabel, que uma hora cansou-se de contar histórias dos outros e abandonou o jornalismo de vez – ou, ao menos, o jornalismo convencional, do dia-a-dia, já que existem muitos que defendem que sua obra literária bem pode ser classificada como new-journalism. Mas lançou apenas três livros, todos dedicados à fragmentos de um microcosmos de violência, prostituição, jogo, vidas e situações humanas que não tinham tanto espaço na mídia convencional – Dario lembrou-se de que Antonio Izabel agradecia seu contato com a obra de Lima Barreto para o seu despertar como homem dentro do escritor, que a partir daquele momento, liberto da opressão editorial e do compromisso com o fechamento da edição para falar das pessoas que como ele só seguiam adiante dentro da vida e fora da totalidade, que afinal “cada um é cada um e não tem nada disso de que temos os destinos colados uns aos outros”, dizia Antonio na tal entrevista.

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