Dario se imprensou no banco de trás,
onde outros três homens já estavam sentados. Pernalonga pôs-se no banco da
frente, do lado de uma mulata magrela, que Dario acreditou não ser a namorada
do motorista, já que aceitava de bom grado os chamegos de seu amigo. Afinal,
não podia explicar muito bem, nem para si mesmo, porque havia entrado no carro,
mas os temores e suspeitas de Dario foram logo descartados quando um dos
rapazes imprensados nos bancos de trás com ele sacou do bolso um baseado e,
destacando-se do imprensodromo, inclinou-se para frente e acendeu o cigarro -
com as duas mãos protegendo a chama do vento que entrava a toda, “porque só tem
filho da puta nesse carro e todo mundo quer fumar, mas ninguém é capaz de
fechar a porra do vidro”, explicou o dono da maconha, que agora passava a bola
para Dario.
Quando chegou na casa onde rolava a
festa, Dario já estava chapado e meio bêbado por conta d’uma garrafa de
Conhaque que havia rolado pelas bocas durante a viagem. Enquanto descia do
carro, ligeiramente amparado por um dos camaradas do banco de trás, Dario viu
Pernalonga desaparecendo a frente, rapidamente olhando para trás, um brilho
tosco nos dentes enegrecidos e rachados, Sérgio Sampaio tocando Rosa Morta ou
reflexões de um executivo, música pesadíssima que recordava a Dario de um
período da faculdade em que tinha ficado parado, ligeiramente surtado, ainda
que contido, bêbado, ainda que chapado, estudando, ainda que incapaz.
À Pernalonga a música não parecia porra nenhuma e na verdade estava a fim
era de ouvir um funk tocando, que já tinha visto uma crioula gostosa dando
trela num canto e queria ver a dita dançando bem juntinho com ele. Mas até que
a música seguinte, do cd Cruel, Polícia, Bandido, Cachorro, Dentista,
Pernalonga até gostou, mas não tanto que iria sair por aí perguntando o que ia
tocar.
A estrutura cultural de Pernalonga não era das mais vastas, mas o tipo
era esperto o bastante para se fazer interessante, e aprendera a citar uma ou
outra frasezinha que deixasse calcinhas e cus molhados. Mas só a esses
desatentos, Pernalonga interessava – e ele também só se interessava pela tríade
babaquara-playboy-piranha; sendo assim, o conjunto estava feito.
“E você, rapaz? Qual foi?”
Dario tinha ficado sozinho, ainda abraçado à bolsa com as entrevistas e
textos de Pedro Conselheiro. A voz vinha do alto de um galho – uma figura magra
e com roupas (bermuda e camiseta) curtas e largas: era Francisquim, cabelos
soltos, sorriso no rosto, sorriso com baseado. Pulou para perto de Dario,
escorregando no chão de terra, só não se estabacando por completo porque Dario
segurou-o pelo braço, largando, enfim, da tal bolsa.
- Opa, tá tudo bem, respondeu Francisquim, ajeitando-se, ficando de pé,
ainda com o sorriso, ainda com o baseado. Enrolado em celulose, ainda apagado,
o cigarro de maconha brilhava na escuridão. – Vai um fuminho, aí?
Dario aceitou, ainda silente.
- Quem é você, irmão.
Dario respondeu. Apenas nome, sem sobrenome.
Francisquim insistiu, pegando de volta o baseado: - E d’onde você é, meu
camaradinha?, perguntou em meio a uma grande baforada que resultou em tosse.
Rindo, explicou-se, sem bem saber por quê: - Foi esse pulo. Fiquei
agitado. Quis te dar um susto. Conte, Dario. Conte-me tudo. Que faz em Macuco?
Tanto lugar para se ir nesse mundo. Que diabos você tá fazendo aqui?
Dario ia começar a falar. Ia contar a história do escritor desaparecido,
badulaque literário da classe média carioca dos anos setenta; Dario poderia
falar horas e horas de Pedro Conselheiro, de como ele havia se juntado a umjornalista pré-gonzo, e de como os dois haviam se resolvido a filmar numacidade do interior uma terrível história de vingança sobrenatural – a natureza,
maldita, voltando-se contra os homens, agindo além da razão, concedendo, enfim,
a grande dádiva do mundo, que é o desaparecimento, o esquecimento, a fagulha de
memória que falha em brotar nos olhos verdes de uma bela mulher... Dario
poderia falar sobre tudo isso, mas Francisquim puxou-lhe pelo braço, mostrando
com o baseado o grupo de homens, piranhas e moleques que se reuniam numa mesa
bem na frente da varanda (a mesma onde, alguns anos antes, Pernalonga - que era
o destaque do grupo reunido à mesa - notara uma carcaça de cachorro morto sob a
mesa, e transtornou-se quando, dias depois, notou ainda o cão a apodrecer ali),
onde alguém havia trazido um rolo de celulose que foi puxado em cerca de vinte
e cinco centímetros e agora era exibido como que num pedido para que todos
compartilhassem um pouco de sua erva.
Francisquim chamava a atenção para Pernalonga, que nesse momento enfiava
a mão direita dentro das calças, tirando da cueca um saquinho com alguns
camarões - "coisa linda de se ver", disse Francisquim, mal escondendo
um fio de baba que lhe brotava no canto do lábio.
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