terça-feira, 1 de julho de 2014

Seqüência 16 - Marralha!



            Dario despertou abraçado a um travesseiro duro, encharcado da própria baba. Estava, ele quis pensar que sim, no quarto do tio de Pernalonga, que a essa altura Dario já tinha se tocado de que era, na verdade, um traficantezinho do interior, metido à besta. O que não conseguia entender era por que o outro tinha enfiado ele ali, na casa do tio.
            “Bem, honestamente, que se foda”, pensou o Dario, já ciente de que àquela altura já não faria muita diferença.
            Então, levantou-se, foi ao banheiro, com sua bolsa, que dormira colada a ele na cama. Retirou escova e creme dentrífico. Não deixou nada fora do lugar. Penteou cabelos, tirou remela, cagou, limpou-se e balançou o pinto, deixando sua única marca: uma gota amarela no azulejo, próximo à caixa da descarga, que ele fez questão de dar.
            Saiu para a varanda, deparando-se com o sol que o fez fechar os olhos, deixando assim de notar a árvore que não estava mais lá, dois quilômetros a frente, do outro lado da rua, no alto de um pasto.
            Dario subiu as escadas que davam pra casa de Pernalonga, que já estava acordado, sentado no chão, no quintal, próximo a um monte de terra remexida, garrafão de cinco litros de vinho barato pousado ao seu lado. Mais próximo, Dario notou que a garrafa estava cheia de bolas de gude. E só não estava cheia até a boca, porque Pernalonga já tinha espalhado algumas pelo chão e agora se divertia, rindo só, procurando acertar ao léu algumas bolinhas.
            Pernalonga disfarçou o susto da aproximação rasteira do outro, limitando-se a olhar por cima do ombro, mandando o outro sentar. Dario sentou na borda do buraco, Pernalonga jogando gude do seu lado, sob a terra batida. Dario viu então que eram quatro buracos. O maior era quase do seu tamanho, com mais de trinta centímetros de profundidade, os outros eram menores que um punho e nada fundos, distantes um metro um do outro.
            - Eu nem lembrava que essa garrafa estava enterrada aí. – disse Pernalonga.
            - Você que enterrou?
            - Anos atrás. Um tesouro de boleba.
            - Boleba.
            - Boleba. Isso aqui – falou Pernalonga, arremessando uma bolinha para Dario -, boleba.
            - A molecada chamava de bola de gude. Primeira vez que vejo alguém chamar de boleba.
            - Gude. Também chama assim. Nome diferente, mesma coisa. Quer jogar?
            - Isso é bulica – falou Dario, apontando para os três buracos.
            - Bulica. Aqui, também.
            - Marralha!
            - Filho da puta.
            Pernalonga entregou uma bolinha para Dario, e foi fazer a linha para decidirem quem ia jogar primeiro. O ritual era normalíssimo, seguido ainda que apenas duas pessoas fossem jogar e ambas já tivessem barba na cara. Como Dario havia clamado pela marralha, que na linguagem dos meninos, dava o direito de ser o último a jogar a boleba na direção da linha. Era ali, na área da linha, que ficaria decidida a ordem do jogo. Quanto mais próximo da linha, mais perto da primeira jogada, que, efetivamente, obtinha vantagem sobre as outras. Com a marralha, o moleque jogava sua bolinha depois de todos os outros e, ordem dos jogadores estabelecida, tentava tirar alguma vantagem, mesmo que fosse afastando a bola de um amiguinho, prejudicando também a sua posição. A moral da molecada.
            Pernalonga jogou a sua bolinha. Parou um palmo depois da linha. Dario jogou a sua com leveza. Tanta leveza que ela bateu no chão e ficou. Não rolou um centímetro na terra fofa. Ficou mais de um metro longe da linha.
            Na vantagem, Pernalonga deu um teco, deixando sua boleba próxima do primeiro buraco. (O objetivo era fazer sua bolinha passar, na ordem, pelos três buracos, as bulicas, ida e volta, que é quando o jogador ganhava o direito de passar a acertar os outros jogadores, eliminando-os do jogo – durante o caminho, no afã de ser engolido pelas bulicas, os jogadores também se acertavam, mas apenas no intento de afastar os outros da vitória.) Em sua primeira jogada, Dario jogou com força demais e sua gude rolou até a segunda bulica, ficando presa até que Pernalonga o tirasse dali, coisa que só aconteceria em algumas jogadas, já que ele ainda precisava passar pelo primeiro buraco.
            Papum Pernalonga passou pelo primeiro buraco e na mesma tacada em que passou pelo segundo, arrancou Dario dali, deixando-o longe horrores do primeiro buraco, exatamente dentro do primeiro grande buraco feito por Pernalonga. Mas, vá lá. Dario se abaixou no buraco, um arrepio já lhe colhendo a boca do estômago. Pensou em perguntar por que Pernalonga tinha cavado o buraco maior em primeiro lugar. Afinal, não lembrava da garrafa com as bolinhas. Mas só pensou em perguntar. Antes que o arrepio se encerrasse, levou uma pazada na cabeça e, felizmente, não precisou pensar em mais nada.
            Pernalonga, enquanto enterrava o corpo, também agradecia por tudo ter sido muito rápido.

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