Dario despertou
abraçado a um travesseiro duro, encharcado da própria baba. Estava, ele quis
pensar que sim, no quarto do tio de Pernalonga, que a essa altura Dario já tinha
se tocado de que era, na verdade, um traficantezinho do interior, metido à
besta. O que não conseguia entender era por que o outro tinha enfiado ele ali,
na casa do tio.
“Bem, honestamente, que se foda”,
pensou o Dario, já ciente de que àquela altura já não faria muita diferença.
Então, levantou-se, foi ao banheiro,
com sua bolsa, que dormira colada a ele na cama. Retirou escova e creme
dentrífico. Não deixou nada fora do lugar. Penteou cabelos, tirou remela,
cagou, limpou-se e balançou o pinto, deixando sua única marca: uma gota amarela
no azulejo, próximo à caixa da descarga, que ele fez questão de dar.
Saiu para a varanda, deparando-se
com o sol que o fez fechar os olhos, deixando assim de notar a árvore que não
estava mais lá, dois quilômetros a frente, do outro lado da rua, no alto de um
pasto.
Dario subiu as escadas que davam pra
casa de Pernalonga, que já estava acordado, sentado no chão, no quintal,
próximo a um monte de terra remexida, garrafão de cinco litros de vinho barato
pousado ao seu lado. Mais próximo, Dario notou que a garrafa estava cheia de
bolas de gude. E só não estava cheia até a boca, porque Pernalonga já tinha
espalhado algumas pelo chão e agora se divertia, rindo só, procurando acertar
ao léu algumas bolinhas.
Pernalonga disfarçou o susto da
aproximação rasteira do outro, limitando-se a olhar por cima do ombro, mandando
o outro sentar. Dario sentou na borda do buraco, Pernalonga jogando gude do seu
lado, sob a terra batida. Dario viu então que eram quatro buracos. O maior era
quase do seu tamanho, com mais de trinta centímetros de profundidade, os outros
eram menores que um punho e nada fundos, distantes um metro um do outro.
- Eu nem lembrava que essa garrafa
estava enterrada aí. – disse Pernalonga.
- Você que enterrou?
- Anos atrás. Um tesouro de boleba.
- Boleba.
- Boleba. Isso aqui – falou
Pernalonga, arremessando uma bolinha para Dario -, boleba.
- A molecada chamava de bola de
gude. Primeira vez que vejo alguém chamar de boleba.
- Gude. Também chama assim. Nome
diferente, mesma coisa. Quer jogar?
- Isso é bulica – falou Dario,
apontando para os três buracos.
- Bulica. Aqui, também.
- Marralha!
- Filho da puta.
Pernalonga entregou uma bolinha para
Dario, e foi fazer a linha para decidirem quem ia jogar primeiro. O ritual era
normalíssimo, seguido ainda que apenas duas pessoas fossem jogar e ambas já
tivessem barba na cara. Como Dario havia clamado pela marralha, que na
linguagem dos meninos, dava o direito de ser o último a jogar a boleba na
direção da linha. Era ali, na área da linha, que ficaria decidida a ordem do
jogo. Quanto mais próximo da linha, mais perto da primeira jogada, que,
efetivamente, obtinha vantagem sobre as outras. Com a marralha, o moleque
jogava sua bolinha depois de todos os outros e, ordem dos jogadores
estabelecida, tentava tirar alguma vantagem, mesmo que fosse afastando a bola
de um amiguinho, prejudicando também a sua posição. A moral da molecada.
Pernalonga jogou a sua bolinha.
Parou um palmo depois da linha. Dario jogou a sua com leveza. Tanta leveza que
ela bateu no chão e ficou. Não rolou um centímetro na terra fofa. Ficou mais de
um metro longe da linha.
Na vantagem, Pernalonga deu um teco,
deixando sua boleba próxima do primeiro buraco. (O objetivo era fazer sua
bolinha passar, na ordem, pelos três buracos, as bulicas, ida e volta, que é
quando o jogador ganhava o direito de passar a acertar os outros jogadores,
eliminando-os do jogo – durante o caminho, no afã de ser engolido pelas
bulicas, os jogadores também se acertavam, mas apenas no intento de afastar os
outros da vitória.) Em sua primeira jogada, Dario jogou com força demais e sua
gude rolou até a segunda bulica, ficando presa até que Pernalonga o tirasse
dali, coisa que só aconteceria em algumas jogadas, já que ele ainda precisava
passar pelo primeiro buraco.
Papum Pernalonga passou pelo
primeiro buraco e na mesma tacada em que passou pelo segundo, arrancou Dario
dali, deixando-o longe horrores do primeiro buraco, exatamente dentro do
primeiro grande buraco feito por Pernalonga. Mas, vá lá. Dario se abaixou no
buraco, um arrepio já lhe colhendo a boca do estômago. Pensou em perguntar por
que Pernalonga tinha cavado o buraco maior em primeiro lugar. Afinal, não
lembrava da garrafa com as bolinhas. Mas só pensou em perguntar. Antes
que o arrepio se encerrasse, levou uma pazada na cabeça e, felizmente, não
precisou pensar em mais nada.
Pernalonga, enquanto enterrava o
corpo, também agradecia por tudo ter sido muito rápido.
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