quinta-feira, 3 de julho de 2014

Seqüência 17.1 - quem se explica se condena, quem cegueia tiroteia pena



            Voltar para casa foi uma boa decisão depois da cana. Eu poderia ter vagado um pouco, caindo na casa de conhecidos por um tempo, até finalmente voltar pra cá, mas se fizesse jamais chegaria em Macuco num momento tão propício. Como meu novo amigo Darío vive dizendo, chegamos todos juntos aqui para compararmos funerais, paixões e delírios.
            De fato, desde que conheci Darío e pude estar junto com ele e Tompinhão, passei a compreender a necessidade dele de que estabeleçamos semelhanças em nossos passos pelas ruas de Macuco. Darío, alias, parece convencido de que estamos envolvidos em padrões sutis, promovendo repetições e reinterpretações da realidade. Ele está convencido de que pode levantar o asfalto como um tapete e que, ali embaixo, encontrará, entre a poeira e as moedas perdidas, documentos raros que abrilhantarão a memória local.
            Eu o entretenho regularmente, contando histórias que me foram passadas por meu tio (que, por sinal, foi um dos tantos falecidos desde que voltei pra cá), contos sinistros onde a cidade tem uma sósia macabra, presa no reflexo na margem do rio... Essas coisas todas assombravam a criançada quando eu era guri e, muito provavelmente, também quando meu tio era jovem, ele devia se mijar de medo desse papo.
            Mas agora, só interessa mesmo a tipos curiosos como Darío. Ele não sabe bem o que fazer com essas informações. Mostrou-me um livrinho onde se lia:

“A mudança repentina de ambientes em uma mesma rua no espaço de alguns metros; a clara divisão de uma cidade em zonas de distintas atmosferas psíquicas; a linha de mais forte inclinação – sem relação com o desnível do terreno – que devem seguir os passeios sem propósito; o caráter de atração ou repulsão de certos espaços: tudo isso parece ser ignorado. Em todo caso, não se concebe como dependente de causas que possam ser descobertas através de uma cuidadosa análise, e das quais não de possa tirar partido. As pessoas são conscientes de que alguns bairros são tristes e outros agradáveis. Mas geralmente assumem simplesmente que as ruas elegantes causam um sentimento de satisfação e as ruas pobres são deprimentes, e não vão mais além. De fato, a variedade de possíveis combinações de ambientes, análoga à dissolução dos corpos químicos puros num infinito número de mesclas, gera sentimentos tão diferenciados e tão complexos como os que pode suscitar qualquer outra forma de espetáculo. E a menor investigação revela que as diferentes influências, qualitativas ou quantitativas, dos diversos cenários de uma cidade não se pode determinar somente a partir de uma época ou de um estilo de arquitetura, e ainda menos a partir das condições de vida.”

e

            “O principal drama afetivo da vida, fora o eterno conflito entre desejo e realidade hostil ao desejo, parece ser a sensação do passar do tempo. A atitude situacionista consiste em sobrepujar o fluxo do tempo, em oposição aos procedimentos estéticos que tendem a fixar a emoção. O desafio situacionista diante das emoções e do tempo seria apostar todas suas fichas na mudança, indo sempre mais longe no jogo e na multiplicação dos períodos excitantes.”

            Agora, preste atenção, que eu vou explicar do que isso tudo se trata. Porque Darío ainda não entendeu a diferença entre as histórias e o que realmente acontece. Tudo o que ele vê é a confusão calma do interior, a miríade perversa de eventos rotineiros que escondem um mar de violência silenciosa, bem típica de qualquer canto de roça.
            Tompinhão, por outro lado, é um perverso, cético, encerrando suas crenças como pode, fechando-se para alianças e ridicularizando empregadores e autoridades. Não sei como ele aguenta, tampouco como o aguentam. Quando eu trabalhava na Fábrica esse tipo de atitude não era tolerada de ninguém, quanto mais de um subordinado de bunda raspada.
            A Fábrica, como vocês devem saber, não é apenas uma, mas três. E elas não ficam em Macuco, apesar de ficarem. Como eu disse, explicarei de uma forma que os outros não são capazes: embora sempre se tenha questionado os limites territoriais de Macuco com Cantagalo, a coisa pega fogo pra valer no final dos sessenta e começo dos setenta, quando começa a se fomentar um novo sonho da emancipação de Macuco, então distrito de Cordeiro (que antes, também pertencera a Cantagalo), isto porque ali bem perto, ao largo do córrego do Val de Palmas, foram descobertas jazidas de calcário com potencial exploratório de mais de quinhentos anos. Uma beleza, não? Seria, se Macuco não tivesse que lidar com a poluição resultante e, agora emancipada, pudesse contar com os impostos gerados por essas fábricas.
            Acontece que ao longo dos anos a cidade vem sendo constantemente sacaneada em tribunais que, à revelia de tantos documentos quanto surgem, insistem que o tal córrego fosse confluente do Rio Negro e não do Rio Macuco, o que, remontando a pilhas de documentos e decretos e brigas judiciais, acabou deixando Macuco pela metade. O curioso é que, apesar do IBGE considerar bairros inteiros. repletos de cidadãos macuquenses, como parte de Cantagalo, a grande maioria dessas pessoas paga impostos e recebe serviços básicos de Macuco.
            Ou seja, os moradores dos bairros da Reta, Morro de Santos Reis e Nova Macuco, vivem em outra cidade, apesar de no primeiro estarem construindo um hospital municipal com verbas destinadas a Macuco. Isso sem contar que estamos o tempo inteiro tentando nos justificar, como se Macuco não pudesse ter nenhuma grandeza genuína. Ou mesmo uma identidade firmada.
            Não tem vinte anos que nos emancipamos e em apenas três prefeitos já tivemos duas reformas completas da praça no centro da cidade. Um desses prefeitos tentou até mudar a forma como as pessoas se referiam a si mesmas: os macuquenses, por um breve período de tempo de suas histórias, passaram a ser macucoenses.
            Pode parecer bobo pra você que é de fora, mas essas pequenas coisas já nos fazem duplos de nós mesmos de uma maneira muito mais sinistra do que eu parecer com o Darío Vuturuá que parece com o Tompinhão Coelho ou o fato de que Macuco tem uma cidade fantasma afundada em seu reflexo no rio e outra escondida nas nuvens, que vai descer a qualquer momento, esmagando-nos com cópias perfeitas e angelicais de nós mesmos.
            É por isso que eu nunca mais trabalharei numa fábrica de cimento, é por isso que eu voltei para casa e aproveitei a graça de que nenhum policial me parou até agora, para descolar um bico de servente de pedreiro. Por isso também que, secretamente dei graças por todo o bagulho desaparecido do meu quintal. E por querer paz e sossego, eu ainda fumo minha erva, mas não topei o pedido dos padres para voltar a traficar. Ou será que topei?
            Tem dias em que eu sinto como se tudo fosse diferente e eu não pudesse voltar atrás. E em outros dias, tudo está bem e o mundo continua girando sem a minha interferência. Síclico Císifo.

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