Voltar para casa foi uma boa decisão depois da cana. Eu poderia ter vagado um pouco,
caindo na casa de conhecidos por um tempo, até finalmente voltar pra cá, mas se
fizesse jamais chegaria em Macuco num momento tão propício. Como meu novo amigo
Darío vive dizendo, chegamos todos juntos aqui para compararmos funerais,
paixões e delírios.
De
fato, desde que conheci Darío e pude estar junto com ele e Tompinhão, passei a
compreender a necessidade dele de que estabeleçamos semelhanças em nossos
passos pelas ruas de Macuco. Darío, alias, parece convencido de que estamos
envolvidos em padrões sutis, promovendo repetições e reinterpretações da
realidade. Ele está convencido de que pode levantar o asfalto como um tapete e
que, ali embaixo, encontrará, entre a poeira e as moedas perdidas, documentos
raros que abrilhantarão a memória local.
Eu
o entretenho regularmente, contando histórias que me foram passadas por meu tio
(que, por sinal, foi um dos tantos falecidos desde que voltei pra cá), contos
sinistros onde a cidade tem uma sósia macabra, presa no reflexo na margem do
rio... Essas coisas todas assombravam a criançada quando eu era guri e, muito
provavelmente, também quando meu tio era jovem, ele devia se mijar de medo
desse papo.
Mas
agora, só interessa mesmo a tipos curiosos como Darío. Ele não sabe bem o que
fazer com essas informações. Mostrou-me um livrinho onde se lia:
“A
mudança repentina de ambientes em uma mesma rua no espaço de alguns metros; a
clara divisão de uma cidade em zonas de distintas atmosferas psíquicas; a linha
de mais forte inclinação – sem relação com o desnível do terreno – que devem seguir
os passeios sem propósito; o caráter de atração ou repulsão de certos espaços:
tudo isso parece ser ignorado. Em todo caso, não se concebe como dependente de
causas que possam ser descobertas através de uma cuidadosa análise, e das quais
não de possa tirar partido. As pessoas são conscientes de que
alguns bairros são tristes e outros agradáveis. Mas geralmente assumem
simplesmente que as ruas elegantes causam um sentimento de satisfação e as ruas
pobres são deprimentes, e não vão mais além. De fato, a variedade de possíveis
combinações de ambientes, análoga à dissolução dos corpos químicos puros num
infinito número de mesclas, gera sentimentos tão diferenciados e tão complexos
como os que pode suscitar qualquer outra forma de espetáculo. E a menor investigação
revela que as diferentes influências, qualitativas ou quantitativas, dos
diversos cenários de uma cidade não se pode determinar somente a partir de uma
época ou de um estilo de arquitetura, e ainda menos a partir das condições de
vida.”
Introdução a umacrítica da geografia urbana, Guy E. Debord
e
“O
principal drama afetivo da vida, fora o eterno conflito entre desejo e
realidade hostil ao desejo, parece ser a sensação do passar do tempo. A atitude
situacionista consiste em sobrepujar o fluxo do tempo, em oposição aos
procedimentos estéticos que tendem a fixar a emoção. O desafio situacionista
diante das emoções e do tempo seria apostar todas suas fichas na mudança, indo
sempre mais longe no jogo e na multiplicação dos períodos excitantes.”
Por umaInternacional Situacionista, Guy Debord
Agora,
preste atenção, que eu vou explicar do que isso tudo se trata. Porque Darío
ainda não entendeu a diferença entre as histórias e o que realmente acontece.
Tudo o que ele vê é a confusão calma do interior, a miríade perversa de eventos
rotineiros que escondem um mar de violência silenciosa, bem típica de qualquer
canto de roça.
Tompinhão,
por outro lado, é um perverso, cético, encerrando suas crenças como pode,
fechando-se para alianças e ridicularizando empregadores e autoridades. Não sei
como ele aguenta, tampouco como o aguentam. Quando eu trabalhava na Fábrica
esse tipo de atitude não era tolerada de ninguém, quanto mais de um subordinado
de bunda raspada.
A
Fábrica, como vocês devem saber, não é apenas uma, mas três. E elas não ficam
em Macuco, apesar de ficarem. Como eu disse, explicarei de uma forma que os
outros não são capazes: embora sempre se tenha questionado os limites
territoriais de Macuco com Cantagalo, a coisa pega fogo pra valer no final dos
sessenta e começo dos setenta, quando começa a se fomentar um novo sonho da
emancipação de Macuco, então distrito de Cordeiro (que antes, também pertencera
a Cantagalo), isto porque ali bem perto, ao largo do córrego do Val de Palmas,
foram descobertas jazidas de calcário com potencial exploratório de mais de
quinhentos anos. Uma beleza, não? Seria, se Macuco não tivesse que lidar com a
poluição resultante e, agora emancipada, pudesse contar com os impostos gerados
por essas fábricas.
Acontece
que ao longo dos anos a cidade vem sendo constantemente sacaneada em tribunais
que, à revelia de tantos documentos quanto surgem, insistem que o tal córrego
fosse confluente do Rio Negro e não do Rio Macuco, o que, remontando a pilhas
de documentos e decretos e brigas judiciais, acabou deixando Macuco pela
metade. O curioso é que, apesar do IBGE considerar bairros inteiros. repletos
de cidadãos macuquenses, como parte de Cantagalo, a grande maioria dessas
pessoas paga impostos e recebe serviços básicos de Macuco.
Ou
seja, os moradores dos bairros da Reta, Morro de Santos Reis e Nova Macuco,
vivem em outra cidade, apesar de no primeiro estarem construindo um hospital
municipal com verbas destinadas a Macuco. Isso sem contar que estamos o tempo
inteiro tentando nos justificar, como se Macuco não pudesse ter nenhuma
grandeza genuína. Ou mesmo uma identidade firmada.
Não
tem vinte anos que nos emancipamos e em apenas três prefeitos já tivemos duas
reformas completas da praça no centro da cidade. Um desses prefeitos tentou até
mudar a forma como as pessoas se referiam a si mesmas: os macuquenses, por um
breve período de tempo de suas histórias, passaram a ser macucoenses.
Pode
parecer bobo pra você que é de fora, mas essas pequenas coisas já nos fazem
duplos de nós mesmos de uma maneira muito mais sinistra do que eu parecer com o
Darío Vuturuá que parece com o Tompinhão Coelho ou o fato de que Macuco tem uma
cidade fantasma afundada em seu reflexo no rio e outra escondida nas nuvens,
que vai descer a qualquer momento, esmagando-nos com cópias perfeitas e
angelicais de nós mesmos.
É
por isso que eu nunca mais trabalharei numa fábrica de cimento, é por isso que
eu voltei para casa e aproveitei a graça de que nenhum policial me parou até
agora, para descolar um bico de servente de pedreiro. Por isso também que,
secretamente dei graças por todo o bagulho desaparecido do meu quintal. E por
querer paz e sossego, eu ainda fumo minha erva, mas não topei o pedido dos
padres para voltar a traficar. Ou será que topei?
Tem
dias em que eu sinto como se tudo fosse diferente e eu não pudesse voltar
atrás. E em outros dias, tudo está bem e o mundo continua girando sem a minha
interferência. Síclico Císifo.
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