quarta-feira, 30 de abril de 2014

Seqüência 12: INT. – CASA DE NHENHENHEIM – MANHÃ, TARDE OU NOITE



Um ambiente tomado por fumaça, misturando sala, cozinha e lavanderia, com BUDAGORDA parado diante da geladeira aberta, braço apoiado na porta.

        BUDAGORDA
      (soltando fumaça pela boca enquanto grita)
ACABOU A COMIDA!

Deitados no chão, LEPRETÃO, NHENHENHEIM e SURIQUITO se mexem, mostrando que ainda estão vivos, apesar de mergulhados num tapete mais sujo que um cinzeiro.

        SURIQUITO
Sem larica não tem onda, só fome.

        LEPRETÃO
O que o poeta ali quer dizer é que precisamos forrar o bucho se vamos continuar fumetas dessa maneira.

        NHENHENHEIM
Eu entendi.

        SURIQUITO
Rola da gente roubar umas galinhas...

        NHENHENHEIM
Nessa velocidade pré-cambriana em que você se encontra?

        LEPRETÃO
Não entendi o pré-cambriana.

        SURIQUITO
Cala boca. Eu tenho uma idéia melhor.

        BUDAGORDA
Ninguém vai querer comer essa bunda magra olhando pra essa cara barbuda, rapa!

        SURIQUITO
Não, seu demente. Tô propondo da gente fazer o óbvio. Vender um pouco dessa erva e descolar uma grana.

        BUDAGORDA
Ih, mas eu não tenho vocação pra trafica.

        NHENHENHEIM
E o Pernalonga tem?

terça-feira, 29 de abril de 2014

Seqüência 11 - uma biografia de turbulências



Eis que Tompinhão-Coelho achou melhor sair da cidade quando foi descoberto que era ele o cabeça de um grupo que escrevia e distribuía um jornal anônimo pelas madrugadas de Macuco.
Nos anos em que esteve fora, ele trabalhou como assistente de coveiro, usou drogas capazes de enlouquecer homens com o dobro do seu tamanho, escreveu textos elogiosamente pagos para líderes religiosos e, em um dia que tinha uma ferida no escroto, fez sexo desprotegido com uma garota de programa.
Tompinhão-Coelho voltou para casa depois de ser picado por uma cobra, esperando que ninguém se lembrasse do ódio que ele inflamara e que Furquinha lhe pagasse o que estava devendo. Nem uma coisa nem outra, mas três dias depois de pisar em solo macuquense levou uma coça que o fez se perguntar se pernoites no hospitaleco de Macuco seriam uma constante a partir de agora.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Seqüência 11 - uma conversa de redação



            Darío Vuturuá pensava na sorte que tinha, quando na primeira tarde à frente da redação, ele também teve de decupar alguns muitos minutos de discurso furado, convertendo os atropelos do português em uma esmiuçada transcrição que logo teria a gramática sumariamente executada pela revisão de Furquinha, o patrão mais estranho que já tivera o desprazer de ter. Mas Darío também estava ansioso pela chegada de Tompinhão-Coelho, que ele já havia percebido rabiscando algumas caricaturas de Furquinha às escondidas, normalmente com o patrão caracterizado como um apresentador de programas de domingo, de pé sobre um púlpito, microfone à mão, palma levantada como que a orar, condenado, na forma de desenho, a eternamente soltar parvoíces medíocres como “A FORÇA QUE TENHO NÃO ME FOI DADA, GANHEI COM SUOR E ORAÇÕES” ou “EU SOU UM COMUNICADOR, TÃO SABENDO?” ou ainda, e esta acabava sendo a preferida de Darío Vuturuá, com o Furquinha-caricatura com as mãozinhas pro alto e dedinhos balançando, ele tinha até lágrimas nos olhos (arrojado, o desenho convertia uma das lágrimas em balão), dizendo “EU ENSINEI MACUCO A LER!!!”, o que quase acabou com um de seus discursos porque ninguém dos que viram o desenho conseguiu segurar as risadas. E Darío estava ansioso para convidar Tompinhão-Coelho para uma empreitada diferente que agüentar o blá-blá-blá de Furquinha ou observar Pernalonga cavar por todo o quintal em busca de uma dolinha de maconha.
            Então, Tompinhão-Coelho chegou, de óculos escuros, disfarçando a óbvia chapação. E Darío Vuturuá foi lá falar com ele.

DARÍO VUTURUÁ
Dá uma olhada nisso aqui, ô, Tomás.

TOMÁS PINHÃO
Bicho, como é que você ouviu me chamarem naquela noite no Pernalonga?

DARÍO VUTURUÁ
Tompinhão?

TOMPINHÃO
Tompinhão-Coelho, meu camarada.
Não é o nome com que me batizaram, mas é o que me faz eu.
Sacou, Ururuá?

DARÍO VUTURUÁ
É Vuturuá. Mas pode me chamar só de Darío.

TOMPINHÃO-COELHO
Vou chamar você de Dario. Sem o acento.

DARIO
Melhor, não, Coelho.

COELHO
Por que não?

DARÍO
Me chama de Darío, que na escola eu ficava puto quando me chamavam errado.

T.P.C.
Então, você entendeu o meu ponto. E me chama de Tompinhão-Coelho, que eu prefiro.
Mas, diga lá, Darío, o que você queria falar comigo?
Quer que te descole mais fumo?

D.V.
Não, não. Obrigado. Eu prefiro ir devagar, sabe?
Na verdade...
...eu fico meio lento quando fumo.

T.P.C.
Tá certo, mas me conta aí, que pasta é essa que você tá segurando aí, doido pra abrir?

D.V.
Ah, essas são as notícias do monstro, cara.

            E Darío Vuturuá entregou uma pasta repleta de recortes de jornal para Tompinhão-Coelho. E um novo monstro estava para ser gerado.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Seqüência 10 de novovo



            Lia e relia já aquelas notas. Nenhuma pista. A entrevista, um bate-papo amistoso entre dois velhos conhecidos, prosseguia por páginas e páginas, regada a álcool e sabe-se lá que mais, lembranças de uma convivência que à época já beirava os trinta anos. Mas não tinha nada de útil. Afinal, era velharia. Tivera um trabalho da porra para tirar aquilo do acervo doado pela família de Antonio Izabel à universidade, e, no seu ponto de vista, nenhuma recompensa, visto que a enorme decupagem era, afinal, apenas uma curiosidade. A entrevista nunca havia sido publicada, ainda que Antonio tivesse tomado o cuidado de transcrevê-la por inteiro, provavelmente reutilizando as fitas depois.
            Irritado, Dário pôs os papéis de lado, de volta à enorme pilha que começava a lhe parecer como um tumor que ele arrastava para todo canto que ia.
            - Vai ler isso tudo, sentado aí?
            A pergunta vinha da sorridente moça de olhos escuros que lhe servia a segunda cerveja, enquanto limpava a mesa com um pano úmido.
            - Eu já li isso tudo. Mais de uma vez. É força do hábito, eu me espalhar assim, deixando a mesa cheia dos meus papéis. Mas nunca é mesa de bar. – ele ri, ela sorri. – Mas eu já li isso tudo. Melhor guardar, não é? Vou acabar derramando cerveja em cima. Sou um desastre.
            - E você também não é daqui, leitor afobado.
            - Não, não sou. Mas também não sou afobado. Por isto estou sentado aqui.
            - Está esperando alguém?
            - De certa forma. Já ouviu falar de alguém chamado Pedro Conselheiro?

            A conversa entre o forasteiro Dário e a balconista do bar da Pousada deu-se por pouco mais que quatro minutos, quando Ré-Barba, um bebum tradicional desses que povoam as calçadas e bares, bateu no balcão, pedindo uma pinga. Para um homem, no entanto, aquele distraído bate-papo parecia ter durado toda uma eternidade. Pernalonga, sentado no canto oposto do bar, junto aos engradados empilhados de cerveja, observava atentamente o bailar imóvel do corpo da atendente que, passadas quase duas semanas, ele ainda não tinha tido coragem de perguntar pelo nome, embora todos os dias mantivesse uma espécie de diálogo simples e pré-marcado com ela, donde obtinha sua ração contumaz de cerveja, cachaça e tira-gosto.
            Com razão, Pernalonga tinha de ouvir a troça de Francisquim que o zoava dizendo que ele esperava que, em algum momento, a moça despertaria para si mesma e o encararia através e além dos olhos vermelhos de maconha e beiço inchado de cachaça e, de alguma forma, iria encontrar o verdadeiro amor, naquela confusão de braços e enapopés que se emarafanhavam noite afora, sem mistério algum, no resfolego da masturbação, lençóis sujos e calças manchadas.
            Cenário montado, Pernalonga soube que aquele homem não podia mais ficar ali. As mãos na cintura, o pé direito tocando no chão apenas pela ponta da sandália, o leve chacoalhar da cintura, até o cabelo sendo colocado pr’atrás da orelha. Pernalonga sabia que ela seria do outro. Se ele permitisse que o outro permanecesse ali.
            Assim, pôs-se Pernalonga a agir da forma que lhe era mais comum: puro impulso e improvisação. Assim que a garota voltou para o balcão, levantou-se, passando por ela e, na costumeira falta de jeito, deixou o dinheiro da cerveja (faltando vinte e cinco centavos) no balcão e foi em direção ao estranho.
            - Você falou de Pedro Conselheiro, não foi? Desculpe. Eu estava ouvindo. Eu acho que posso te ajudar a encontrá-lo. Eu? Sou o Pernalonga. Sou uma lenda, pode perguntar por aí. Pululam histórias com meu nome por essa Macuco. Uma lenda sim, senhor. Agora me acompanhe. Você me acompanhe, por favor. Seu nome? Dário. Dário Vuturuá. Prazer, Dário. Eu sou o Pernalonga. A gente tá indo pra minha casa.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Seqüência 10 de novo - Monstros e suas buscas



e como cada linha me desmoralizava mais e mais. Como se eu fosse continuamente atingido— Não. Como se eu enxergasse entre elas. Entre as linhas, sabe? Eu podia ver monstros. Eles se formavam nos espaços em branco das páginas, como aranhas, criaturas vis, crescendo através das linhas. O branco das páginas me assustava. Eram os meus monstros esses espaços, this blank. E finalmente eu não pude mais escrever. Eu não sei o que era. Eu posso te falar aqui de tudo, cara. Posso te contar cada detalhe sórdido, posso tentar me expressar, dizendo o tanto de mal que já fiz, o tanto que queimei... Só pra escrever. O caso é que escrever é um hábito nocivo. Como diabos farei para te explicar?
Antonio Izabel - Você pediu para gravar. Eu preferia que você me escrevesse as respostas, mandasse pelo correio...
Pedro Conselheiro – O caso é que eu não posso mais, camará. Eu não posso fazer isso. Escrever é doloroso...
Antonio Izabel – Mas necessário. Você mesmo já me disse que não sabe de outra forma para viver.
Pedro Conselheiro – É. Bem a minha cara ter dito essa merda. Mas olha só que besteira. Estou transformando essa crise em um clichê patético. Não sou como Sábato, impossibilitado de escrever por motivos médicos, se abraçando a outra forma de expressão para seguir vivendo. Eu quero parar. Isto está me matando, mas não é de uma secura poética que falo, eu não estou amedrontado pelas letras, não exijo desta dimensão elevada de onde arranco as histórias que me forneçam uma salvação a qual não acredito ter direito – o que faço é me afogar pela vida, nas garrafas, me afastando das pessoas, buscando uma coisa que não posso nomear, do único jeito que o mundo moderno permite que sejamos: amargos, doloridos, insuficientes. E eu acho isso chato pra caralho. Tanto que vou mudar tudo. Vou viver do jeito sorridente dos normais. Vou me secar, Antonio Izabel, vou me jogar do alto daquele prédio lá da minha historinha, só que não vou pra cima, vou pra baixo, que também existe, segundo o Huxley, um pouco de transcendência na queda. Outro dia vi um filme em que a mocinha diz assim no final: que é ótimo rir de quem está perdendo. Que ganhar é muito fácil. Perder é que é difícil. Entende isso?
Antonio Izabel – Então você está desistindo de escrever. Só que ao invés de seguir a rotina normal dos artistas malditos, você vai optar por uma vida normal, um mundo colorido, com mulher, filhos, empregado no bate-cartão, carro de segunda mão e um copo de pinga no final do dia? Ué, meu amigo, não sou eu que vou dizer nunca ter sonhado em fazer o mesmo. O que me incomoda são seus monstros. Você criou um considerável universo mitológico. Complexo. Um Olimpo recheado com tipos esquisitos que algumas pessoas e grupos crêem se tratar de entidades reais. Como eles surgiram, de onde vêm? Fale mais sobre os monstros.
Pedro Conselheiro – Ora, caralho. Eles vêm de mim. E há esses outros, esses que estão perdidos e vem até mim. Pegue um livro, observe os espaços em branco entre as linhas, palavras e até letras. É esse vazio assustador, Antonio. Eu sinto por trás dos meus olhos, cutucando, arranhando, como uma fera pedindo para sair. Meu vazio e minha solidão. Meus monstros e demônios. E eu não posso matá-los. Mas também não posso mais alimentá-los.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Seqüência 10.1 - O Gato



            Hosana concordara com a idéia de Francisquim de deixar Pernalonga vender maconha para alguns de seus conhecidos, desde que o negócio não incluísse dolinhas. Deveria vender apenas peso. À Pernalonga pareceu ótima a oportunidade de voltar aos negócios, menos bandeiroso, podendo se dar ao luxo de descartar a lida com moleques abusados que batiam na sua porta às três da manhã, inconvenientes, ligando para o seu celular e falando abertamente quantidade e valor.
            Tinha de ser muito cuidadoso, agora. Pra começar, saber onde diabos iria esconder dois quilos de maconha hidropônica sem que a polícia ou gente como Francisquim (embora este fizesse apenas pela diversão) não invadissem seu quintal enquanto ele não estivesse e roubassem toda a droga.
            Agora mesmo, Francisciquim estava metido dentro da casa do amigo, curioso de ouvir mais uma mensagem de voz no celular

Que mentira que é você. Que engodo. Solto o ódio só pra te detonar, que não sou nada disso. Sou melhor que você. Essa pose e nariz empinado. Como se não precisasse de ninguém. Vai lá. Babaca! Vai lá pra essa vida louca ridícula que você tanto quer. Vai lá, seu babaca. Vai se foder!

e notando num canto, perto da mesa coberta por contas vencidas, copos sujos e diferentes cinzeiros cheios de bingas, uma cama improvisada, sem colchão, apenas duas colchas e um travesseiro, embolados, certamente usados. O problema era por quem. Um cachorro estaria muito bem servido se passasse à noite embolado em tais trapos. Um homem mal e mal conseguiria se cobrir.
            Chiquim deu dois passos e conferiu o quarto, único outro cômodo da casa de Pernalonga, já que o banheiro ficava do lado de fora, alguns metros para dentro do quintal – uma diversão para os moleques com quinze anos que queriam pregar sustos uns nos outros, um tormento para homens com mais de trinta tentando chegar ao banheiro no frio da madrugada antes que as bexigas estourassem. Cheio de poeira, o cômodo revistado não era muito diferente do quarto de muitos dos amigos de Francisquim – embora alguns, como o padre, tivessem quartos melhores que outros. O único diferencial no quarto de Pernalonga, além dos pôsteres de mulher pelada espalhados pelas paredes, era o microondas na cabeça da cama.
            Para Francisquim, o problema da maconha de Hosana era a enorme lombração que deixava após ser fumada. Os passos, atos, pensamentos todos passavam a fazer parte de um excelso veio de prata brilhando para fora da existência, um ponto fulgurante no silêncio do espaço, na linguagem sinestésica que fazia sentido a Pernalonga. Francisquim despassou-se até o lado de fora da casa, sem tirar olhos do celular e da tomada e da luz acesa e correu olhos na geladeira e colou-se no silêncio pra ter certeza de que ouvia o barulho do motor. E ouvia.
            Saiu da casa, Pernalonga nem notando, Chiquim de olho na fiação, Pernalonga ainda naquela de lamentar a árvore cortada, Chiquim sacando agora tudo, falou:
            - Cara.
            - Fala.
            - Sua geladeira não tá congelada. A água tava estragada, mas não tinha gelo no congelador.
            - O que tem isso?
            - E seu celular devia ter explodido.
            - Devia?
            - Devia. Ligado tanto tempo. Queima. Kaput, mermão! Mas não aconteceu.
            - Sorte minha, não é?
            - É, sorte. Mas isso aí, pra mim, tem outro nome.
            Francisquim apontou para o alto, o amarfanhado de fios que se embolavam num canto do lado de fora da casa de Pernalonga, e que iam culminar num único fio, branco, de extensão, esticado pela jabuticabeira, através do quintal, até a casa do tio morto.
            - Isso se chama gato -, falou Francisquim: - Seu tio fez um gato de luz pra você.
            Ainda era primavera, mas a quentura da noite parecia verão. No morro à frente, um mar de vaga-lumes tomava o campo de visão num frenético piscar. Próximo à casa de Pernalonga, cigarras torpedeavam a noite com seu cantar. E lá embaixo um caminhão desgovernado batia no carro de Francisquim, acordando a vizinhança.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Seqüência 10 - O gato



            Voltando pra casa, Francisquim colocou por engano uma fita com músicas de Clara Nunes pra tocar. Pernalonga falou para ele ficar de ouvido atento pra Sagarana, música com letra de João de Aquino e Paulo César Pinheiro. De resto, tudo foi silêncio.
Chegando na casa de Pernalonga, Chiquim parou o carro no meio da ladeira, em frente a casa de um vizinho, e falou:
            - Dá tempo de fumar um baseado contigo. Pode ser?
            - E vai deixar o carro aí? Não pode.
            - O quê. Não tem problema. Não vão bater nele. E não tem guincho aqui. Vamos.
            Francisquim abriu o porta-malas, Pernalonga pegou o pacote deixado ali e os dois subiram as escadas meio enlameadas que iam dar na casinha do segundo.
            No meio do caminho, Pernalonga fez um costumeiro gesto de silêncio para o amigo. Era pra não fazer barulho enquanto passavam pela casa do tio, que ficava no meio do caminho. Fizeram silêncio e passaram. Pernalonga se arrependeu depois, achou que devia ter feito barulho. Que agora ia fazer barulho pra sempre. Que nunca fez silêncio por respeito, sempre fazia por medo. Não ia transformar medo em respeito por causa de uma cosia tão simples quanto a morte. Ia fazer barulho agora. Sempre.
            Chegando a casa de Pernalonga, se sentaram na varanda, nos mesmos lugares que algumas horas antes. O dono da casa abriu o pacote no colo, sob a luz de um poste que, na rua de cima, iluminava muito pouco. Às sombras viu mesclar o esverdeado dos camarões de maconha.
            - Nunca na vida pensei que ia ver uma coisa assim, tão bonita. – falou Pernalonga.
            - Ah, agora falou bonito. Isso é que é uma paixão que eu valorizo – disse Francisquim, pegando um pedaço de camarão no pacote. – Tão logo você se encanta, já se faz necessário queimá-la toda, embriagar-se para esquecer. Isso que é amor. O resto é inquietação.
            Pernalonga sacou uma pequena folha de celulose.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Seqüência 9 - Onde homens enforcados discutem seus destinos



Pernalonga se sentou em uma das longas poltronas da sala, arrumada como se constantemente esperasse que uma festa acontecesse por ali.
- Não sejamos tímidos -, disse o padre, sacando da caixa dois baseados prontos, iguaizinhos ao dele, entregando-os a Francisquim e Pernalonga -, o melhor é que todos fumem e rezem por sua própria conta. Só o máximo para Jesus!
- E o nirvana. – Emendou Chiquim.
- Ô, Buda, não. Olha o respeito que essa casa é de uma fé só. – Falou, com seriedade, o padre Hosana, para em seguida abrir um sorriso: - A propósito, estava eu aqui, a cuidar da minha vida, orando para o meu Senhor, e sou interrompido em todas as minhas obrigações eclesiásticas por dois tipos malandros e sem fé como vocês. A que se deve a sua visita, Francisquinho?
- Padre – disse Chiquim -, este jovem que me acompanha precisa de palavras sábias. Precisa do conhecimento e da experiência que só um homem como você pode dar.
- Que experiência, Chico? Ele é padre. E virgem. E não tem nem cinco anos a mais que eu. – Falou Pernalonga para o amigo. E, na emenda, olhou para Hosana: - Sem querer ofender, é claro.
- Da experiência, do fato de eu ser abençoado e poder dar graças, e até da minha idade, você está muito certo, meu querido. Mas esses são beneméritos que podem ser atribuídos a qualquer um. O que me incomoda é você questionar minha vida sexual. Vindo de um homem que andava a colocar o pau dentro do forno microondas durante a adolescência, nada poderia ser mais ofensivo para mim. – Falou Hosana, levantando-se e disparando toda a fumaça presa em seus pulmões contra o vidro da janela.
Pernalonga acompanhou o espatifar da fumaça sobre o vidro iluminado e parcialmente esverdeado pela mata lá fora. Sabia, em seu íntimo, que o outro não falava a sério, embora estivesse ciente de que, da forma como tinha encerrado o discurso, Hosana bem poderia ter lhe ofendido. Por sorte estava calejado das piadinhas.
- Ai de nós!, Pensadores! (Maiusculizo as palavras, ridicularizo com a História e sobriamente dedico um nobre eflúvio as convenções da Palavra.), a que Pecados nos entregamos? O pecado do Sabor, Senhor. Que espécie de intruso se engana que o Reino dos Céus é tomado de Sabor? Um intruso no Céu, Senhor. Tenho um Amém?
- Amém, responderam em coro, Pernalonga e Francisquim em resposta ao apelo de Hosana.
- Amém!, o melhor som que existe, digo eu, calejado já de ouvir se repetir em ecos o Amém e os Aleluias diversos de uma Vida Dedicada ao Santificar de Meus Passos. Exagero? Nem Tanto. Minha Profissão é a de Mitificar tudo que Vejo. Sacerdote-Xamã-Louco-Ermitão. Muito Prazer, Senhor.
- Expie os seus pecados, Toelho Maluco! – Falou Francisquim, dando continuidade ao tom debochado de Hosana.
- Acho que não tenho nenhum pecado além dos registrados na minha folha corrida. O resto foram erros, falhas, pesos e passados. – disse Pernalonga.
- Vê, padre? Este homem está distante do caminho da salvação. – falou Chiquim à Hosana, que se aproximou de Pernalonga, baseado entre os dentes, pegando-o pelos ombros, alçando-o a sua própria altura, como quem respira bufando, soltou a fumaça bem na sua cara.
- Isto não é batismo, que não sou João. Isto é farra, que sou Hosana.
- Pensei que hosana fosse louvor.
- Dá no mesmo. Festa no céu. Vem, Pernalonga, seu maldito cartoon demente e aproveitador. Vem conhecer as catacumbas, o ossuário protegido, que afinal tenho esse nome roubado do Quarup, e mamãe bem sabia o peso dos nomes, bem sabia que eu teria um segredo para proteger. Hosana tem segredos e pecados. Mas se não podemos falar dos pecados de vosmicê, Perna, ao menos falemos dos segredos que eu carrego. Que, afinal, o Chiquinho não te trouxe por acaso.
- Como assim? – perguntou Pernalonga.
- We're gonna make you an offer you can´t refuse. – disse Francisquim.
- Que que é isso? Você agora vai tirar o dia pra citar O Poderoso Chefão pra mim?
- Viu só que bicha que ele é, padre? Sempre assim, esquentadinho. Tá com saudade de levar na bunda na cadeia...
- Ninguém me comeu, Chico. Larga dessa merda.
- É, Francisquinho, larga de merda. Ninguém ia comer essa bunda magrela e ossuda, mesmo. Agora, acalmem os ânimos as duas senhoras, e acompanhem-me. Temos coisas a conversar.

Pernalonga seguiu Hosana e Francisquim, que já era habituado ao caminho, por dentro da mata, até chegar numa estufa cercada de pinheiros e bananeiras. Com tetos de vidro e paredes feitas de longas tábuas de compensado rosa-choque, a estufa que mais parecia uma casinha de tralhas guardava em seu interior uma plantação responsável por colocar mais de sete quilos de maconha nas ruas a cada dois meses. Uma produção engenhosa e cara, bancada pela Igreja através das mãos hábeis de Hosana Conselheiro.
O pouco ortodoxo “padreco”, como era chamado por alguns amigos mais antigos, era responsável por oferecer por baixo dos panos a erva do clero. Da primeira vez que visitara Hosana, Pernalonga se encantara com a idéia de padres conduzindo missas chapados daquela mesma maconha que ele estava fumando. Tudo em nome da fé, claro.
- Então, qual é a proposta? – perguntou Pernalonga, pondo fim a um silêncio que dominara a cena desde que saíram da casa de Hosana, ainda fumando os três.
- Cruel, não é? Este camarada é curto e grosso, padre. Na linha, pode falar logo, que ele vai entender. Eu sempre te digo isso. Pernalonga é na linha.
- Sou de linha arrebentada, Chico. Desses equilibristas ruins que se espatifam no meio da rua.
- Ah, é nada. Só está rabugento. E apaixonado. Te falei isso, Hosana? O Pernalonga está apaixonado. Tá todo tristonhoinho e com o coração a mil por conta de um rabo de saia. Olha que beleza a juventude do sentimento!
- Ah, então é amor que esconde essa carranca macambúzia! – atestou Hosana ao comentário de Francisquim, anunciando em voz alta a própria compreensão, enfim, do tormento visível na face de Pernalonga. – E que te falta para a felicidade ao lado da sua beleza amada, meu filho?
- Falar com ela, padre. Falta que ele abra a boca.
- Ah, sim. Compreendo. Falar é bom. Se quieto, o amor é morto.
- Eu não estou apaixonado – falou Pernalonga -, eu mal vi a mulher. Apenas achei-a bonita. Nada mais. Que coisa! – disse na direção de Chico: - O que vocês querem, afinal?
- Ainda não deu pra adivinhar, Perna? – falou o padre em meio a um gesto de mesura com as mãos, exibindo, com o acender das luzes, o verde mar de folhas que tomavam o interior da estufa.

domingo, 20 de abril de 2014

Seqüência 8 - Hosana nas alturas



            E como diria um personagem prestes a estrear por estas páginas, não é possível medir as ações de Deus. Sendo assim, é impossível decifrar se a fita se embolou engolindo o Free que gargarejava dentro do carro por puro acaso ou foi por vontade clara de suicídio após a temeridade musical disparada pela dupla, que agora estava indecisa entre ouvir uma gravação ao vivo do Men at Work, ou o cantarolar de Pernalonga A Flor e o Espinho, do Nelson Cavaquinho. Mas o gosto do outro pela música nacional nem teve muito tempo para ser questionado, porque logo os dois chegaram ao Sítio Flor Iluminada, na comunidade Santa Maria, que se encontrava, como sempre, com as porteiras abertas.
Seguiram por oitocentos metros até a casa principal, de onde, no terraço do segundo andar, podiam ver seu anfitrião, que acenava pra eles enquanto desciam do carro.
            - Sua benção, padre Hosana – falou Francisquim.
            - Deus te abençoe, meu filho... – respondeu o outro que já irrompia, por dentro da casa, escada abaixo, na direção dos visitantes, para, já na porta, completar as benções: -... da puta!
            Rindo, Francisquim e Hosana abraçaram-se e se cumprimentaram como velhos conhecidos. Pernalonga permanecia distanciado, um pouco cego pelo sol, um tanto constrangido por não se sentir intimo o suficiente, já que só tinha estado ali umas poucas vezes, e isso já há alguns anos.
            - Entonces, meu querido Francisquinho. Conte-me as novidades da cidade. – falou Hosana.
            - Ah, padre Hosana, aqui está, a melhor novidade de todas. – apontando para Pernalonga.
E o padre abriu a face em sorriso, soltando o esperado: - O que é que há, velhinho?
Pernalonga se aproximou, cumprimentando o padre: - Como vai o senhor?
- Senhor, garoto, como você bem, sabe, está...
- Na puta que pariu! – Disse Francisquim, interrompendo o padre, enquanto se dependurava no seu pescoço, rindo: - Este cara não é uma figuraça? – E, olhando pro padre, completou: - Você sabia que minha mãe nunca aprovaria a nossa amizade, não é?
- Como assim? Eu sou um homem de Deus. – Falou o padre, saindo do abraço apertado de Francisquim para pegar ele e Pernalonga pelos braços e encaminhar os dois para dentro de casa, onde deu prosseguimento ao assunto: - E por falar nisso, penso ouvir sinos, rapazes. Isto é o sinal de que já estamos passando da hora de encontrar com o Nosso Senhor. Preparados para as orações?
- E como não estaria, Padre? Não é, Perna? – disse Francisquim.
- É. Como eu não estaria?
O padre levou os dois até a sala principal da sua casa, que descia num estratégico declive, dando vistas para o lindo quintal e também para toda a área sul do sítio, que nesse ponto não passava de um morro verdejante e bastante arborizado em sua base, ao leito do rio. O visual sempre impressionara a Pernalonga, enquanto que Francisquim, mais acostumado a visitar o reverendo, já não parecia se surpreender com a beleza do lugar.
- Então, amigos, se adiantem! Temos muito que orar -, falou o Padre, sacando de um estojo atrás do sofá um enorme cigarro feito à maquininha, com maconha de uma ponta a outra. Vendo o cigarro enrolado em celulose que Hosana acendia com fósforos a fortes baforadas, Pernalonga entendeu de onde vinham todas as pontas guardadas por Chiquim: eram presentes do padre, já que era praticamente impossível fumar aqueles baseados inteiros, exatamente pelo capricho da maquininha em distribuir igualmente a maconha por todo o corpo do fumígeno.

sábado, 19 de abril de 2014

Seqüência 7 - Amor




            A estrada esburacada pontuava o monólogo de Francisquim. Os solavancos colavam à guitarrada de Fire and Water do Free no K-7 gasto que se embolava em chiados, poeira e um brilho rosa na cara de Pernalonga, que pedia ao motorista para encostar o carro.
            - Pra quê? – perguntou Chiquim.
            - Fica mais fácil de apertar o baseado. – Pernalonga firmava o cigarro com quatro pontas retiradas de um vidro onde Francisquim guardava cerca de duzentas. O pote tinha sido trazido da coleção particular do outro que, antes de iniciar a vigem, passou em casa para descolar um pão com manteiga para ele e o amigo. E como todo mundo que é obrigado a se afastar das drogas com alguma brutalidade, seja para se tornar um servo de Deus em alguma pentecostal da vida, ou mesmo por motivos legais como os de Pernalonga, era comum que aqueles ao seu redor, ainda muito crus e bandeirosos, recebessem gratuitamente alguma espécie de conselho - Você devia tomar mais cuidado. Tá doido de andar com esse monte de ponta dentro do carro.
            - Isto não passa de neura de ex-presidiário. Seu tempo na gaiola fez você ficar pensando igual aqueles do lado de lá. Nós somos outra coisa, meu amiguinho. Nosso papo é muito mais místico, nossa onda é muito mais do coração e menos da tesão... Já reparou que Gita do Raul Seixas tem backing vocals iguais a apresentação do Joe Cocker em Woodstock? O curioso é que o Raul, eu acho que usou mulheres mesmo. Aquelas vozes finas cantando com o Joe eram todos homens. Loucura, não acha?
            - Nunca tinha reparado. Virou crítico musical, agora?
- Aprendi com a sua mãe.
- Foi? Esse tempo todo preso e você só conseguiu pensar nisso de interessante pra falar?
            - Não, tenho duas coisas, também.
            - O quê?
            - Isto – e Pernalonga pegou o pau e as bolas com a mão direita, mostrando o volume sob a calça para Chiquim – e isto. -, emendou mostrando o baseado apertado na outra mão.
            - Ah, definitivamente este é mais grosso e prazeroso. Faça o favor de acender, já.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Seqüência 6 - Macuco Beleza



            Um pouco depois de Pernalonga entrar em casa e sair com garrafa de vodka pela metade nas mãos, Darío Vuturuá notou na vermelhidão do que via, que estava de pé junto a um precipício onde um dia esteve uma escada. Se caísse, bau-bau, ia virar história e ninguém ali tinha aprendido a porra do seu nome para que a história ficasse boa.
            Respirou mais um pouco da goiaba sinestésica que estava no ar e se juntou aos outros caras, que agora maquinavam um jeito de conseguir maconha, antes que entrassem de vez na idéia da vodka (que Darío já estava bicando) e acabassem rumando para o pó, que era um rumo que normalmente deixava as pessoas sem dormir, mas inexplicavelmente acordando-os longe de casa, em algum lugar ermo, com o nariz coçando, a cocaína no fim e uma diarréia dos infernos. Sem contar que, nesses casos, quase não se conseguia voltar para casa depois de uma aventura como essa, onde o tempo se extinguia ao invés de ficar mais ameno e favorável, como no caso da erva.
O suor fazia com que os óculos de Darío escorressem nariz abaixo, algo que ele remediou colocando as hastes por dentro do cabelo sobre as orelhas. Convenhamos, o rapaz estava tenso de estar ali, no meio daquele bando de anormais (olhe!, o taxista que o trouxe até ali estava subindo em uma árvore, facão na mão, dizendo que ia pegar uma fruta-pão, mas antes que ele alcançasse um certo galho, escorregou árvore abaixo, detendo-se numa poça de lama antes que escorresse pelo barranco como uma laranja podre), e a vodka colaborava para tornar a sua primeira noite em Macuco uma das mais quentes de sua vida.
            Jorge Tadeu, o taxista, lavava o rosto e as pernas, rindo, bebericando da garrafa de vodka, cada vez mais perto de acabar, sabendo que em breve todos acabariam caindo de nariz, depois de baterem na porta de um e outro, tentando descolar uma mistura sádica de coca com mármore e comprimido para dor-de-cabeça esmigalhado. E, embora Jorge Tadeu soubesse com certeza onde descolar maconha àquela hora, achava Pernalonga sujeira demais para ir junto.
            Felizmente, foi o próprio Pernalonga quem começou a expulsar todos de lá. O caso é que todo mundo, menos Pernalonga, desceu aos tropeços até a rua onde estava estacionado o Corcel 82, motor 1.6 à gasolina e de motor azul que o avô de Jorge Tadeu chamava de Banheirão. Darío foi imprensado no banco de trás com Samurai, que tão naturalmente quanto se fora, voltara.
            “Se liga, Urutum”, falou Tompinhão-Coelho para Darío “este é o Samurai, ele pode chegar sem avisar, que é gente boa. Fica tranqüilo.”
            “Tudo bem, cara?”
            Darío respondeu que sim a Samurai, que ele agora começava a notar que em nada se parecia com um japonês do período feudal, tampouco com o Tom Cruise. Mas ainda assim, após recolocar os óculos no lugar, sobre o nariz, algo que ele fazia constante, às vezes com o dedo do meio, outras com o indicador e na maior parte do tempo simplesmente pegando toda a armação e apertando contra o rosto, ainda assim Darío estava com o cuzinho apertado, porque sabia no que resultaria aquela viagem de carro acompanhado daqueles malucos. E ele detestava a tensão exagerada à que todos se submetiam quando batiam a madrugada atrás de um traficante.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Seqüência 5 - Jorge Tadeu



            Jorge Tadeu era taxista há quase quarenta anos. Embora seus carros mudassem com uma rapidez absurda, ele mesmo parecia ser sempre o mesmo. As pelancas não lhe caiam, os cabelos não branqueavam e nem as olheiras roxeavam. Um sedentário, moldado ao assento do carro, o tempo todo pendurado a uma "polsheti" (ela nele, caída pelo ombro, mas era ela que o levava, entendam desde já, ela que o levava), sorrindo com seus dentes separados, um espetáculo do absurdo, bem ali, na frente deles, trazendo no carona uma figurinha pálida, que Tompinhão-Coelho achou que reconhecia de algum lugar.
            (Lance rápido: Tompinhão-Coelho conhecia a figura do ônibus, que quando Furquinha ligou pra ele que era pra voltar pra Macuco e trabalhar no jornal, ele também foi informado de que um tal Darío Vuturuá iria trabalhar com ele. Fuça daqui, fuça de lá, achou o perfil no Facebook de Furquinha, e lá o tal Vuturuá. O sujeito parecia maluquinho, maluquinho. Era um velhinho pinguço com menos de trinta anos. De certa forma, tinha tudo a ver com Macuco. E Tompinhão-Coelho achou estranho quando o viu na fila do ponto de ônibus em Itaboraí, que era um cara igualzinho o tal Vuturuá. E continuou achando estranho quando ele desceu em Cachoeiras e pegou um ônibus pra Friburgo e de lá um na direção de Macuco e desceu em Cantagalo, de forma que Tompinhão decidiu que, ou o cara tinha errado de estação ou não era quem ele tava pensando, e deixou o assunto para lá. Até aquele momento.)
            Os dois roedores, Jorge Tadeu e a figurinha pálida que estava no banco carona subiram para a casa de Pernalonga, que pelo visto só Tompinhão-Coelho sabia como era, porque Jorge Tadeu estava agindo como um turista e o palidinho, coitado, parecia que ia se cagar. Pernalonga ia na frente, dizendo que talvez tivesse de segurar o cachorro, que todo mundo ia poder sentar e coisa e tal pra fumar um, quando teve um choque. Quer dizer, fingiu tomar um choque tentando ligar a luz do poste que tinha na frente da casa.
            Antes de contar como era a casa de Pernalonga, é preciso dizer como se chegava a ela. O terreno do tio de Pernalonga, aquele que tinha sido enterrado naquele dia, ficava para cima de um barranco, pertinho da estrada, de forma que nem ficava mesmo no Morro do Palhaço, e para subir para a casa do tio precisava subir numa escadinha entalhada no barranco, que era uma merda de tão escorregadia (e onde a figurinha pálida quase deu uma rebolada em direção ao chão, mas foi salvo por Tompinhão-Coelho que lhe forçou o braço, dando graçazadeus que já tinha parado de garoar), daí se chegava na casa do tio, que era bonita, com uma varandinha e uma porta dupla de madeira... Só que as chuvas de uns dois anos atrás desceram com parte do barranco e da varanda e da fundação da casa, de forma que o tio só morava na parte de trás, e um pouco acima, numa casa em frente a uma goiabeira carregada cujo cheiro Pernalonga e Jorge Tadeu sentiam e o rapazinho pálido, que naquela altura já tinha se apresentado como Darío Vuturuá, via numa névoa vermelha intensa que se mostrava mais densa que tudo e que de repente clareou, que foi quando Pernalonga tomou o choque ligando o gato que ligava sua casa à do tio. Mas a claridade entrando através do sinestésico vermelho fumacento das goiabas nos olhos de Darío não era problema igual ao choque que Pernalonga reviu seu terreno todo revirado, buracos em toda parte, e que com toda certeza alguém tinha achado a maconha que ele tinha escondido ali.
            “Porra, me roubaram a erva toda.”
            O lamento não era honesto. Pernalonga sabia que, àquela altura, depois de tanto tempo enterrada, toda a maconha estaria mofada. Mas ele não podia resistir à tentação de arrancar alguns cruzeiros daquelas pessoas, na verdade sua verve maconheirística insistia que ele deveria arrancar algum de Tompinhão-Coelho, Jorge Tadeu e aquele rapazinho pálido, o “Uirátua”. Mas não haveria nenhuma dolinha para se vender naquele momento. E, infelizmente, nada para se fumar também.

Seqüência 4 - Goiabada no ar




            Pernalonga foi quem começou a cantar

Tá na hora, tá na hora
Eeeu queero laricar
Fuma, fuma, tosse, tosse
O beque não vou largar

Dá um tapa e vai pra frente,
solta a fumaça e cai pra trás
Se quiser fumar com a gente,
pode vir, que aqui tem mais

Acende o beque aê, ô ô ô
Acende o beque aê, ô ô ô
Acende o beque aê, ô ô ô

parando logo com a paródia porque cantarolar aquilo sem um baseado não tinha serventia alguma. Tanto que os roedores, Pernalonga e Tompinhão-Coelho, apertavam o passo, ambos carregando mochilas, bolsas e, no caso do primeiro, uma vassoura nova.
            Samurai havia desaparecido no momento em que Pernalonga entrara em cena. Não só não gostava de ser visto na companhia de um traficante pé-de-chinelo, como nunca vira muita graça em fumar maconha. Tompinhão-Coelho, por outro lado, estava ansioso pela familiar neblina de torpor.
            No caminho para o Morro do Palhaço, ou Bairro Doutor Chiquito, como preferem os moradores, Pernalonga e Tompinhão-Coelho foram interrompidos por um senhor bem matuto, que estava apoiado na bicicleta parada, debaixo do chuvisco, pitando um cigarrinho fedorento de palha por sob a aba do chapéu . Ele, então, tirou o chapéu, fez uma mesura seca e falou pra Pernalonga: “Ô, meu menino. Meus sentimentos, tá? Que Deus-Nosso-Senhor te traga consôl, tá?”
            Pernalonga agradeceu, disse mais algumas palavras e continuou andando. Logo, Tompinhão-Coelho perguntou-lhe do que se tratava aquilo: “Quem morreu, Perna?”
            “Meu tio”, respondeu o outro, languidamente.
            “Aquele que te criava? Quando isso, cara?”
            “Ontem. O enterro foi hoje de manhã.”
            Tompinhão-Coelho engoliu em seco, parou por um segundo e então tentou se sair com isto: “Pô, bicho... Então... Você... Você nem chegou a tempo de ver o velho descer?”
            “Descer pro inferno?”
            Putz, quanta merda já se foi dita depois da morte de alguém? Com certeza nada se comparava à vez que a Molecada ia tomar cachaça na Capela Mortuária e se depararam com um velório, desceram amuados e Samurai se queixou para Zelito: “Porra, a gente ia sentar quieto lá, mas um raio duma mulher morreu e agora tem que ficar todo mundo pela”, disse naquele atropelo natural todo dele.
            E ao que Zelito respondeu que "Sim, é o velório da minha mãe" e ninguém soube onde enfiar a cara, Samurai, sendo o mais velho, deu também os pêsames e quase na mesma hora riu como o diabo, que afinal o mico era bom.
            Mas Tompinhão-Coelho se salvou de não ter onde enfiar a cara, que um carro parou bem do seu lado, com jeito de que era pra eles dois que parava, ou para entrarem ou para o govorite comum, que é o que era. E por ser incapaz de identificar a marca ou a placa do carro, ele soube que era Jorge Tadeu quem estava dirigindo.